A relação entre mãe e filha é uma das coisas mais bonitas do
mundo. Desde que elas continuem engessadas nesses papéis: mãe. filha. Quando
uma delas se mexe e, além de mãe ou filha, assume o seu lado mulher, a coisa
geralmente desanda. Ao menos por um tempo.
Já passei daquela fase em que a gente precisa 'apagar'
simbolicamente os pais dentro da gente para que passemos a existir como adultos
autônomos. E, por experiência própria, posso afirmar: não é um momento fácil.
Quem trata disso é Freud, que afirma justamente essa necessidade de
"matar" aqueles que nos geraram para, a partir daí, caminharmos com
as nossas pernas. Ah, falar é fácil, 'seu' Freud, fazer é outra história...
Esse caminho é pautado por muitas lágrimas, muitos desentendimentos, muita insegurança.
Apesar disso, é um caminho absolutamente essencial para todos: pais e filhos.
Para que atinjam algum tipo de verdade - e respeito - na sua relação como
adultos. Sempre ouço calada e com muita desconfiança aquele discurso bonitinho
que afirma 'minha mãe é minha melhor amiga', etc... especialmente se vem de pessoas muito jovens. Na minha opinião, se isso
acontece, a transição ainda não se deu. As duas ainda não saíram daqueles
papéis que, acreditaram, seriam eternos: mãe e filha. Quando a filha se torna
uma mulher, ou, em casos mais raros, quando a mãe deixa seu papel de mãe ser
ofuscado por seu lado mulher acontecem os inevitáveis embates. Que, depois de
superados, até podem dar lugar à amizade verdadeira. Mas com a relação - e os
papéis - redefinidos.
Digo isso à propósito de duas obras com as quais tive
contato recentemente: um livro e um filme.
No romance "Uma Duas", a jornalista Eliane Brum
fala disso, lindamente, poeticamente, visceralmente: uma mãe e uma filha. Uma
mãe que tentou, por todos os meios ao seu alcance, que a filha continuasse
'filha' eternamente. Uma filha que se perdeu da mãe - e, consequentemente, de
si mesma - no seu processo de virar mulher. Um antagonismo que incomodará,
acredito, especialmente às mulheres que lerem o romance. Muitas se reconhecerão
nas situações extremadas, exageradas, absurdas traçadas por Brum. Não porque já
as tenham, efetivamente, vivenciado. Mas porque os dramas desenhados no romance
as lembrarão dos seus próprios, das suas buscas, dos seus medos, das suas
raivas (sim, que somos todas humanas e nada mais humano do que sentir raiva de
quem, naquele momento, te oprime), dos seus ressentimentos. Saí do romance
abalada, mexida, incomodada, mas com uma certeza: ele foi escrito por quem sabe
do que fala. Brum leva a sério aquela frase que diz que a literatura não é
feita de amenidades. Definitivamente, não há nada ameno em "Uma
Duas".
O livro começa na voz da filha, que narra a história do
único ponto de vista possível: o seu. Sob aquele prisma, a mãe é um ser
nojento, dominador, perverso, doentio. Vamos seguindo pelo romance e, a certo
ponto, essa mãe acha a sua voz e começa a nos apresentar a sua versão. E aí
entendemos que, como tudo na vida, a mesma história será diferente a depender
de quem a narra. Nos deparamos com uma mãe frágil, despreparada, imatura, insegura
que, por sua vez, se reporta a um pai opressor, dominador, etc...
Provavelmente, se a esse homem fosse dada uma voz, descobriríamos alguém com as
suas próprias mazelas, inseguranças, medos e traumas. E por aí a história se
repete: cada um de nós tentando lidar o melhor que pode com seus próprios
tropeços, fragilidades e dificuldades. E nem sempre conseguindo.
A outra narrativa é a de um filme, o norte americano
"Pássaro branco na nevasca" (White bird in a bizzard, 2015), de Gregg
Araki. Nenhuma crítica que li sobre o filme apresentou segurança na hora de
classifica-lo: drama, terror, comédia, suspense foram algumas das categorias nas quais
ele foi inserido pelos diversos sites que o analisam. E, realmente, ele não se
insere com clareza em nenhuma dessas classificações. Vemos na tela um binário
mãe / filha vivido pela lindíssima Eva Green e por Shailene Woodley, no papel
da filha que está virando mulher. Somos apresentados à relação perfeita que
existia entre as duas enquanto Kat (o nome da personagem) era o 'bichinho' da
mãe. À medida que a menina cresce, e o papel de mascote vai sendo deixado para trás, a mãe envelhece. Percebemos então a
dificuldade com que Eve, a mãe, atravessa esse processo. Casada com um homem
aparentemente apagado (interpretado por Christopher Meloni, ótimo em sua contida
interpretação de um homem submisso, em especial se lembrarmos do mesmo ator
como o policial charmoso e durão da série SVU), ela é exuberante demais, bonita
demais, fogosa demais, para se contentar em ser apenas uma esposa e... mãe.
Ao contrário da situação mais corriqueira em que a filha
recusa-se a permanecer em seu papel de 'filha' e deseja tornar-se mulher, no
filme de Araki é a mãe que se recusa a engessar-se em seu papel materno, e
abandonar a sua porção mulher que, à medida em que a filha cresce, se vê cada
vez mais ameaçada. Para além dos acontecimentos que pontuam a narrativa - o
sumiço da mãe, a tentativa da filha de lidar com isso, o pai que, aos poucos,
vamos descobrindo ser diferente daquilo que imaginávamos à princípio - a
questão inicial é a mesma do romance de Brum: a transição, sempre difícil, dos
papéis de mãe e filha para os de duas mulheres que - apesar de serem mãe e
filha (e não por causa disso) - se amam.
Não posso dizer como isso se dá na relação entre pai e
filho, mas arriscaria dizer que existem semelhanças, muito embora com as
mulheres seja (sempre!) mais complicado. Mulheres falam mais, sentem mais - ou expressam mais o que sentem - e dramatizam mais. Em um processo que não é fácil, essas características têm o poder de potencialização. A transição do papel de filho para o
de adulto nos transforma - e aos nossos pais - em, literalmente, outras
pessoas. E nem sempre essas pessoas diferentes conseguem manter a mesma dinâmica
na relação. Ou encontrar uma dinâmica possível para que essa aconteça.
O mundo se mexe e se transforma e nós nos mexemos e nos transformamos junto. E um dos movimentos mais bonitos me parece ser aquele que
nos permite a reaproximação, em novas bases, com aqueles que nos deram as
nossas primeiras referências, a nossa segurança no mundo, os nossos valores.
Nas palavras de Daniela Ervolino, "O que nos possibilita de sermos adultos
inteiros, psicologicamente sadios e maduros, é justamente, após nos libertar
das "amarras dos pais" e nos tornarmos independentes, conciliar-se
com eles. Isso mesmo, primeiro se libertar para depois se aproximar, ainda que
simbolicamente. Conciliar-se simbolicamente com pai e mãe, é uma coisa
extremamente necessária, difícil e profunda, pois deve acontecer num nível
ainda mais profundo, no nosso "inconsciente" infantil, não na
consciência adulta de hoje que sabe justificar cada mágoa ou falta de nossos
pais."
Ser capaz de fazer esse movimento é algo que exige de nós
maturidade, compreensão - conosco e com o Outro -, segurança. E nos move na
direção daquilo que verdadeiramente importa: o amor. Acredito mesmo que seja aí
que a transição para o mundo 'adulto' se complete e que nós estejamos,
finalmente, livres para amar aquelas pessoas sem os pesados laços da obrigação. Sermos filhos sem sermos devedores. E, assim sendo, nos permitirmos exercer o amor puro e límpido, liberto das 'cracas' que se grudaram a ele durante os anos de navegação juntos.
No romance de Brum, apesar de todo o peso - excessivo ao ponto do quase doentio -
da narrativa, tal transição acontece lindamente, perto do final da vida da mãe.
No filme de Araki não há espaço para que isso ocorra. E talvez seja essa falta,
mais do que os acontecimentos trágicos de toda a narrativa, que deixem, ao final do filme, uma
sensação de tristeza muda em seus espectadores.