Gosto muito de um livro do historiador italiano Carlo Ginzburg, que se chama 'Olhos de madeira'. O título é uma alusão aos olhos do boneco Pinocchio, feitos de madeira e, já que desprovidos de humanidade, capazes, por isso mesmo, de ver o que lhes rodeia sem naturalizações que, por vezes, obliteram a percepção e impedem que quem olha se maravilhe-espante-horrorize com o que o cerca.
Se Pinocchio passou toda a sua vida de boneco desejando tornar-se um menino de verdade, eu de minha parte, concordo com Ginzburg: um pouquinho de 'madeira' no olhar não faz mal a ninguém. 'Madeira' aqui, no sentido de manter, em algum nível, a capacidade de estranhamento com o que nos cerca, com coisas, acontecimentos e comportamentos que, na maior parte das vezes, tomamos como dado, como algo natural, e, ao assim fazermos, perdemos boas oportunidades de pensar sobre o que está ao nosso redor com um olhar desvendador, curioso, 'estranho'.
O geógrafo Yi-Fu Tuan diz, a respeito da paisagem, que 'a familiaridade cria a afeição ou o desprezo'. Acredito que o que Tuan afirma referindo-se à paisagem física, derrama-se para outras paisagens: as paisagens afetivas, as paisagens culturais, as paisagens dos nossos sentimentos e desejos. E que o antídoto contra esse efeito pode ser exatamente munir-se de um olhar que tente se desvencilhar um pouco do já vivido, daquilo que já se conhece e se toma como certo. Um olhar de madeira.
Essas reflexões vêm por conta de um espetáculo que assisti há alguns dias e não sai da minha cabeça desde então. Já aprendi isso: quando alguma coisa incomoda a ponto de perdurar na mente, tenho algo a aprender, a dizer ou a refletir, com ela e sobre ela.
No palco, oito bailarinos, exibindo-se durante uma hora e meia, em um espetáculo chamado 'Céu da boca'. Antes de tudo, sentada na penumbra do camarote e olhando de cima o teatro lotado, fiquei pensando o que fez aquela gente toda se vestir, se perfumar, deixar o conforto de sua casa naquele frio, para assistir à outras pessoas fazendo evoluções com seu corpo ao som de uma música. 'Mas isso é dança!', vão dizer alguns. É verdade, é dança. Mas, de verdade, o que é mesmo? O que vamos buscar quando sentamos ali dispostos a permanecer calados e quietos por um longo período de tempo, unidos e separados de todos os outros da platéia? Essas questões malucas teimavam em rodear a minha cabeça, de alguma maneira enriquecendo e contaminando a minha própria percepção do evento.
A partir de algum momento, me dei conta do que havia aberto a porta para que estas questões entrassem. E era exatamente um pequeno fator que contribuíra para tirar o véu de naturalização do meu olhar, me permitindo enxergar aquele que poderia ser um prosaico espetáculo de dança, de outra maneira. Esse fator foi o inesperado. Explico: sempre temos alguma expectativa ao nos dirigirmos a um evento deste tipo. Se vamos ao teatro ou ao cinema, esperamos ser entretidos com uma narrativa. Se vamos ver um show musical, esperamos mergulhar prazerosamente no estilo de música que escolhemos. Claro que tudo isso pode se misturar: um show musical pode ter uma narrativa embutida, assim como um filme pode basear-se muito fortemente na sua sonoridade.
E um espetáculo de dança? Será que este pode nos fazer rir às gargalhadas, pode nos comover, pode nos guiar por reflexões que digam de nossos próprios sentimentos? Essas eram as perguntas que eu me fazia - e ainda me faço, passados alguns dias. Porque o que aconteceu naquele teatro foram, na verdade, duas danças: a que rolava no palco e a que rolava na platéia. A do palco, visível e coreografada. A da platéia, invisível e inesperada: uma dança das emoções. É claro que um dos papéis da arte é emocionar, mas nunca peguei ninguém rindo às gargalhadas face um quadro em um museu (chorando já é mais comum...), muito menos em um espetáculo no qual apenas corpos se movem e nenhuma palavra é pronunciada.
Ao final, aos bailarinos cansados agradecendo os aplausos, correspondia uma platéia que parecia também ter dançado, se não em um palco, no interior de suas mentes, nas quais muita coisa foi remexida.
Me parece que ali se alcançou um dos sentido mais plenos da arte: o de comunhão, palavra que, para muito além de seu sentido religioso, traz a significação primeira de 'experienciar juntos'.
Certamente o que vimos naquele teatro naquele dia específico atingiu esse significado e essa importância: a de uma experiência coletiva. Saí dali com mais perguntas que respostas, mas com a sensação boa de que alguma parte de mim tornou-se melhor depois daquela experiência.