13.7.11

Experiências que nos tornam melhores





Gosto muito de um livro do historiador italiano Carlo Ginzburg, que se chama 'Olhos de madeira'. O título é uma alusão aos olhos do boneco Pinocchio, feitos de madeira e, já que desprovidos de humanidade, capazes, por isso mesmo, de ver o que lhes rodeia sem naturalizações que, por vezes, obliteram a percepção e impedem que quem olha se maravilhe-espante-horrorize com o que o cerca.
Se Pinocchio passou toda a sua vida de boneco desejando tornar-se um menino de verdade, eu de minha parte, concordo com Ginzburg: um pouquinho de 'madeira' no olhar não faz mal a ninguém. 'Madeira' aqui, no sentido de manter, em algum nível, a capacidade de estranhamento com o que nos cerca, com coisas, acontecimentos e comportamentos que, na maior parte das vezes, tomamos como dado, como algo natural, e, ao assim fazermos, perdemos boas oportunidades de pensar sobre o que está ao nosso redor com um olhar desvendador, curioso, 'estranho'.
O geógrafo Yi-Fu Tuan diz, a respeito da paisagem, que 'a familiaridade cria a afeição ou o desprezo'. Acredito que o que Tuan afirma referindo-se à paisagem física, derrama-se para outras paisagens: as paisagens afetivas, as paisagens culturais, as paisagens dos nossos sentimentos e desejos. E que o antídoto contra esse efeito pode ser exatamente munir-se de um olhar que tente se desvencilhar um pouco do já vivido, daquilo que já se conhece e se toma como certo. Um olhar de madeira.
Essas reflexões vêm por conta de um espetáculo que assisti há alguns dias e não sai da minha cabeça desde então. Já aprendi isso: quando alguma coisa incomoda a ponto de perdurar na mente, tenho algo a aprender, a dizer ou a refletir, com ela e sobre ela.
No palco, oito bailarinos, exibindo-se durante uma hora e meia, em um espetáculo chamado 'Céu da boca'. Antes de tudo, sentada na penumbra do camarote e olhando de cima o teatro lotado, fiquei pensando o que fez aquela gente toda se vestir, se perfumar, deixar o conforto de sua casa naquele frio, para assistir à outras pessoas fazendo evoluções com seu corpo ao som de uma música. 'Mas isso é dança!', vão dizer alguns. É verdade, é dança. Mas, de verdade, o que é mesmo? O que vamos buscar quando sentamos ali dispostos a permanecer calados e quietos por um longo período de tempo, unidos e separados de todos os outros da platéia? Essas questões malucas teimavam em rodear a minha cabeça, de alguma maneira enriquecendo e contaminando a minha própria percepção do evento.
A partir de algum momento, me dei conta do que havia aberto a porta para que estas questões entrassem. E era exatamente um pequeno fator que contribuíra para tirar o véu de naturalização do meu olhar, me permitindo enxergar aquele que poderia ser um prosaico espetáculo de dança, de outra maneira. Esse fator foi o inesperado. Explico: sempre temos alguma expectativa ao nos dirigirmos a um evento deste tipo. Se vamos ao teatro ou ao cinema, esperamos ser entretidos com uma narrativa. Se vamos ver um show musical, esperamos mergulhar prazerosamente no estilo de música que escolhemos. Claro que tudo isso pode se misturar: um show musical pode ter uma narrativa embutida, assim como um filme pode basear-se muito fortemente na sua sonoridade.
E um espetáculo de dança? Será que este pode nos fazer rir às gargalhadas, pode nos comover, pode nos guiar por reflexões que digam de nossos próprios sentimentos? Essas eram as perguntas que eu me fazia - e ainda me faço, passados alguns dias. Porque o que aconteceu naquele teatro foram, na verdade, duas danças: a que rolava no palco e a que rolava na platéia. A do palco, visível e coreografada. A da platéia, invisível e inesperada: uma dança das emoções. É claro que um dos papéis da arte é emocionar, mas nunca peguei ninguém rindo às gargalhadas face um quadro em um museu (chorando já é mais comum...), muito menos em um espetáculo no qual apenas corpos se movem e nenhuma palavra é pronunciada.

Ao final, aos bailarinos cansados agradecendo os aplausos, correspondia uma platéia que parecia também ter dançado, se não em um palco, no interior de suas mentes, nas quais muita coisa foi remexida.
Me parece que ali se alcançou um dos sentido mais plenos da arte: o de comunhão, palavra que, para muito além de seu sentido religioso, traz a significação primeira de 'experienciar juntos'.
Certamente o que vimos naquele teatro naquele dia específico atingiu esse significado e essa importância: a de uma experiência coletiva. Saí dali com mais perguntas que respostas, mas com a sensação boa de que alguma parte de mim tornou-se melhor depois daquela experiência.



10.7.11

Quanto pode doer uma dor?


A pergunta soa estranha, já que pode-se pensar, a partir dela, que é possível escolher o quanto uma dor irá nos afetar. E me parece que é essa mesmo a questão do filme italiano "Saturno contro", do diretor turco Ferzan Ozpetek. Em cena, um grupo de amigos que se destaca pela diversidade, na qual misturam-se italianos e turcos, pessoas bem sucedidas e desempregados, homo e heterossexuais, casais e pessoas solitárias. Esses personagens caracterizam-se por um convívio no qual vigora um equilíbrio delicado que é subitamente rompido quando um deles sofre um grave acidente vascular cerebral e permanece internado em um hospital.
É a partir desse incidente que aquela harmonia se quebra e as questões de cada um começam a vir à tona: a fragilidade que estava tão bem escondida encontra espaço para se manifestar. E nos fazer enxergar os pontos frágeis do outro é algo que Ozpetek consegue fazer com uma mistura de delicadeza e crueldade. De situações mais óbvias, como a do casal que finalmente encontra a brecha necessária para enfrentar a falência do seu casamento que naufragou nos mares enganosos da rotina e tranquilidade, à outras, que podem até passar despercebidas a um olhar menos atento - por exemplo, a da tradutora turca que questiona tudo e apresenta solução para todos, mas não consegue se relacionar com as suas próprias questões, ou a moça que estuda astrologia e prediz os acontecimentos futuros para os amigos, mas que, na sua vida, só consegue esperar o pior, com seu 'saturno em oposição', e demais configurações astrais que lhe prediriam um futuro desastroso - são várias as situações nas quais é exposta a dor de cada um, aquilo que, lá no fundo, cada um de nós tenta esconder até de si próprio, mas que, em determinados momentos, descobrimos que é impossível.
E é precisamente aí que o filme toca de maneira mais profunda o espectador. Não no grande drama, que é a doença de Lorenzo (interpretado de maneira leve e competente por Luca Argentero) e a dor de seu companheiro, o escritor Davide (Pier Francisco Favino, em uma atuação densa, contida e excelente). Os espinhos que 'Saturno em oposição' crava em nossa sensibilidade são minúsculos e, talvez por isso mesmo, mais cruéis, já que mais difíceis de identificar. São pequenas dores, mínimas incertezas, quase invisíveis inseguranças, que, exatamente por parecerem insignificantes, nos permitem exercer a habilidade de fingir que não estão lá. Quando algo as força a vir à luz, porém, se mostram avassaladoramente destrutivas, insuspeitos pontos frágeis que têm o poder de transtornar - e transformar - as vidas.
O grande mérito do filme é tratar essas questões de maneira leve, nos conduzindo por um caminho cruel com absoluta delicadeza. Assim, a morte de Lorenzo, não é uma surpresa, tampouco algo dramático. O drama fica do lado de fora, como o diretor metaforiza tão bem na cena em que põe todos os amigos no exterior do hospital, assistindo uma desconhecida receber pelo celular alguma notícia que lhe causa uma fortíssima reação. Ao se afastarem dela em respeito àquela dor tão crua, recebem a notícia da morte do amigo.
A grande questão do filme, no entanto, é a que move todos nós: como é possível continuar? Após uma grande perda, face uma gigantesca mudança na vida à qual estávamos acostumados, como é possível seguir em frente? Ou, retomando a pergunta inicial, o quanto uma dor tem o poder de nos paralisar? A resposta, Ozpetek dá na lindíssima cena final de seu filme: o quanto nós mesmos permitirmos. A dor dura o quanto tiver que durar e, ao fim dela, não temos opção a não ser voltar a fazer parte do jogo... mesmo que seja apenas um jogo de ping-pong.