Na véspera:
Fui jantar com um amigo. Firmemente decidida a não beber nada, mas, face à massa al carbonara que nos encarava à mesa, precisei de reforços: 'du vin rouge, s'il vous plaît!'
Cheguei em casa tarde, incomodada porque achei que meu cabelo estava com cheiro de comida. Tomei um banho e não tive paciência de esperar secar. Fui dormir com os cabelos molhados.
Dormi mal, acordei várias vezes durante a noite, levantei para ver as horas, para tomar água, para olhar pela janela, para pensar na vida...
No dia:
Cabelos molhados + várias horas amassados no travesseiro + noite mal dormida e... voilà! Acordei que nem o Rei Leão com olheiras. As olheiras ainda consegui ajeitar com maquiagem, mas o cabelo não havia nenhuma possibilidade de domar, já que o meu senso de economia de espaço na mala me fez largar o secador no Brasil, confiando nos meus cabelos 'lisos'.
Acordei na hora, mas resolvi fazer umas últimas 'modificaçõezinhas' no texto a ser apresentado. Resultado: uma hora e meia na frente do computador e várias mudanças que tiveram que ser inseridas à mão no texto já impresso.
Saí correndo, enfrentando o dia mais frio desde que cheguei em Paris. Prá piorar, com chuva.
Desci na estação 'Notre dame des champs' e (claro!) andei para o lado errado por mais de um quarteirão até perceber o engano. Quem me conhece não se espanta. Eu e minha 'desbussolice' andamos de mãos dadas há muito tempo...
Enfim, percebi o engano, dei meia volta e entrei no 105, Boulevard Raspail. École des Hautes Études en Sciences Sociales. EHESS.
Comecei a lembrar da primeira vez em que, intimidada, entrei neste prédio. Era a segunda semana em Paris e eu começava a escolher os seminário dos quais iria participar. Vim aqui por causa de um curso chamado "Une histoire de la vision", cujo professor, um filósofo, traçava uma epistemologia da visão que, achei, me interessaria para pensar o cinema.
Nas primeiras aulas, não abria a boca, morta de medo do meu francês ainda 'macarrônico' não dar conta do que queria dizer. Lá pela quarta ou quinta semana de seminário, o professor começa a falar de um livro que eu havia lido, chamado "La fadigue d'être soi". De repente, pára, e reclama: 'não consigo me lembrar do nome do autor!'. Seguiu-se o seguinte diálogo:
Eliana (BEM baixinho): Ehrenberg.
Monsieur Jorland: Pardon?
Eliana (já em tom de voz de gente normal): Ehrenberg. Alain Ehrenberg. C'est le nom de l'auteur du livre
Monsieur Jorland: Voilà! Merci!
No final da aula, quando tudo que eu queria era sair dali despercebida, monsieur Jorland subitamente me olha e pergunta: 'E você? Qual é o seu interesse neste seminário?'
Tusso. Respiro. Engasgo. Limpo a garganta. Gaguejo. Começo: 'Bom, eu estudo cinema...'
Quase um ano depois, nas vésperas de voltar ao Brasil, já conhecia monsieur Jorland bem melhor. Conversamos várias vezes sobre o meu tema, ele sugeriu livros e assistiu meus vídeos. Os encontros com ele para conversar sobre a minha tese e sobre os temas nos quais tínhamos interesses em comum acabaram se tornando uma agradável rotina.
Neste último encontro, ele, cortesmente, me pergunta: 'E então, você gostou de morar em Paris?'
E eu digo, claro, a cidade é linda, eu avancei bastante na tese, essas coisas de praxe.
E ele: 'Você gostaria de voltar?'
Eu: 'Sim, claro! Quem sabe, mais tarde, para um pós-doc...'
Ele: 'Bom, eu estava pensando em algo mais próximo. Pensei em lhe fazer um convite para que você retorne no ano que vem, como 'professeur invité' dentro do meu seminário'
Eu: ahhhh... errrr..... bom.... (Eu entendi errado, claro. Puxa, e eu aqui pensando que meu francês estava indo tão bem... Pateta! Mas o que foi mesmo que ele disse?...)
Ele: Eliana, você está me acompanhando?
Eu: Er... Não, desculpe monsieur Jorland. O senhor pode repetir?
Pois é. Era aquilo mesmo e, um ano e meio depois, eu estou aqui novamente, pronta para a minha primeira conferência na EHESS. Acho que nunca estive tão nervosa na vida. Descubro, aterrorizada, que serão duas turmas juntas, uma de filosofia, outra de antropologia. O nervosismo aumenta na exata proporção do número de pessoas que entra na sala. Eu começo a falar.
Vou poupar quem está lendo dos detalhes, mas... tudo se passou 'très bien'. Consegui falar sem gaguejar, os filmes que eu escolhi para passar rodaram sem problemas no computador, e eu sobrevivi mesmo àquela assustadora meia hora de perguntas no final.
Nos últimos minutos, como a discussão acabou migrando para as diversas formas de ver uma cidade, e eu estava mais à vontade, resolvi passar para eles um vídeo curtinho - que fiz em 2008 para o Salão de Arte e Cidade que aconteceu na Ufba, em Salvador -, chamado 'Ways'.
E foi então, enquanto o vídeo rodava, que a ficha caiu. A aula, que me assustou durante tanto tempo, já estava acabando. E daí, todo esse filminho que eu descrevi acima passou na minha cabeça. Confesso que fiquei feliz pelas luzes estarem apagadas por causa do vídeo, porque meus olhos se encheram de lágrimas...
Bom, a primeira já foi. Semana que vem tem mais!