2.8.12

Aquilo que é inominável em cada um

Há algum tempo atrás, fui em uma reunião de uma ONG conhecida no Brasil como NA, narcóticos anônimos. Não faço parte do grupo, as 'drogas' das quais sou dependente são daquele tipo cujos efeitos devastam apenas o interior, e estes efeitos nem sempre são percebidos por quem nos cerca. Dentre as mais importantes, estão livros, filmes, arte e afetos -, com uma ênfase especial nestes últimos. Preservando o 'anônimos' do título, não vou explicar por quais caminhos cheguei até essa reunião, mas o fato é que permaneci lá, em um domingo-final-de-tarde-depois-da-praia, escutando depoimentos de pessoas que passaram por experiências muito peculiares de vida.
Esse episódio tem mais de um ano, mas até hoje lembro com clareza da fala de uma das pessoas presentes que me impressionou bastante. Não tinha nada de excepcional o depoimento, mas me tocou exatamente pela simplicidade das conclusões: um rapaz bonito, tatuado, jeitão de surfista, contava sobre o momento em que entendeu que precisava mudar os rumos que a sua vida ia tomando. Dizia ele: 'ah, eu antes achava que consumir droga não me prejudicava, vivia cercado de gente, cheio de namoradas, nas baladas mais legais, parecia que aquilo só acrescentava diversão. Mas aí, em um certo momento, eu entendi que não era bem assim, que a droga me roubava coisas também. Eu passei a perceber uma série de coisas e situações que não percebia antes. E, uma vez que eu passei a saber, não podia mais fingir que não sabia, né?'. A fala dele prosseguiu, narrando a sequência de atitudes que se seguiu a essa descoberta, o seu processo de recuperação e a retomada de coisas, valores e relacionamentos que haviam sido neglicenciados durante tanto tempo. Mas a clareza daquela conclusão continuou rodando na minha cabeça muito tempo depois que deixei a sala da reunião: 'se eu sei, não posso continuar fingindo que não sei'.
De vez em quando penso nessa frase, e ela passou, sem que eu percebesse com clareza, a fazer parte do meu 'repertório interno', aquele que todos carregamos e ao qual recorremos em alguns momentos, para explicar a nós mesmos determinadas situações, decisões ou atitudes nossas ou das pessoas que nos cercam. E fico pensando também em quanta gente consegue viver driblando diariamente essa verdade tão simples: como fingir que não sei algo que já faz parte de mim? 
Poderíamos pensar nessa questão através de várias das possibilidades que ela apresenta: não posso fingir - para mim mesmo - que não li um livro que já li, que não vi um filme que já vi, que não conheço alguém que conheço, e, especialmente, que não vivi uma experiência que vivi. É como uma cortina: uma vez que ela abriu  - mesmo que tenha sido rapidamente -, e eu vi o que está atrás dela, não dá prá ignorar.
Às vezes dá vontade, claro. Conseguir isso, essa espécie de 'amnésia', tornaria a vida mais fácil. Mas simplesmente não dá. A gente pode até achar que consegue, que damos uma disfarçada, olhamos pro lado, cantamos uma musiquinha e voilà!, aquilo que eu sabia... sumiu! Mas, que nem Freddy Krueger nos nossos pesadelos, as verdades têm o chatíssimo hábito de retornar quando menos se espera, e quererem ser reconhecidas como tal: verdades. E elas voltam, às vezes em sonhos, às vezes em atos falhos, às vezes sob a forma de 'exorcismos' feitos através da produção artística (uma das maneiras mais utilizadas para driblar coisas que não nos convém, na verdade).
Essas reflexões - meio sem propósito, sou a primeira a reconhecer - vêm através da retomada da leitura de Saramago, um autor que gosto mais a cada vez que leio. Parafraseando o que os argentinos dizem a respeito de Gardel (que, embora tenha morrido há tantos anos, 'canta cada vez melhor'), para mim o escritor português, embora morto desde 2010, escreve cada vez melhor. A sua escrita é como uma cebola: vamos descobrindo as camadas, uma após a outra. E algumas nos fazem chorar.
O que dizer de frases como: "Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos"....? Dentro dessa sentença aparentemente simples cabem tantas questões, pensamentos, esperanças, dúvidas e desespero que podem conter uma vida. E como chegar perto de dar nome ao que somos, se aquilo que é inominável também nos compõe, intrinsecamente ao que conhecemos?...
Foi exatamente refletindo sobre esta frase e seus desdobramentos que comecei a escrever esse texto. Isso que não tem nome - e que é o que somos, segundo o escritor - se torna mais completo - e mais desafiador, claro - quanto mais conseguimos nos forçar a não fechar os olhos para aquilo que sabemos a nosso respeito e a respeito do que nos cerca. Mas,... assim como a maior parte das coisas que valem a pena na vida... como é difícil!...


3 comentários:

  1. Fantástica a reflexão. Vai ficar comigo pelo resto do dia.
    Vim parar aqui através do Mundo Pequeno, buscando alguém em Paris (contato e informações), para onde pretendo me mudar no fim desse mês. Que pena que já não está mais lá...
    Mas voltarei aqui outras vezes.
    Abs e tudo de bom

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  2. Oi Lilian,
    Muito obrigada por sua gentileza. Dê uma olhadinha nos primeiros posts, ainda em 2010, eles falam mais do período que morei em Paris. Já conhecia a cidade antes, como turista, e depois do período de um ano que morei lá, ainda voltei, mas por menos tempo. Nada se compara às descobertas de quando você está indo para morar, não é?
    Caso você esteja indo estudar, dê uma olhadinha também no site da Apeb associação dos pesquisadores brasileiros na França): http://www.apebfr.org/blog/ Lá tem sempre informações legais sobre eventos relacionados à área acadêmica.
    Um beijo e boa sorte! Volte outras vezes e dê notícias de como estão indo as coisas. Mande também um beijo à cidade por mim! :P

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  3. Adorei a reflexão... faz tempo que eu mesma não escrevo um post desses, refletindo sobre as muitas coisas que escuto e que depois fico encucada. Tamanha simplicidade e poder das palavras de alguém!
    adorei!!!

    beijooos

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