O contexto:
Um homem está com o seu tempo de vida contado. A morte o procura, na figura de uma mulher, para lhe entregar uma carta que lhe anuncia seus últimos dias. Vai ao teatro onde este homem, um músico, se apresenta junto a uma orquestra, com a intenção de lhe anunciar que o fim se aproxima: o fio que o liga à vida será cortado.
A descrição:
"A orquestra calou-se. O violoncelista começa a tocar seu solo como se só para isso tivesse nascido. Não sabe que aquela mulher do camarote guarda na sua recém-estreada malinha de mão uma carta de cor violeta de que ele é destinatário, não o sabe, não poderia sabê-lo, e apesar disso toca como se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo quanto havia calado, os sonhos truncados, os anseios frustrados, a vida, enfim. Os outros músicos olham-no com assombro, o maestro com surpresa e respeito, o público suspira, estremece, o véu de piedade que nublava o olhar agudo da águia é agora uma lágrima. O solo terminou já, a orquestra, como um grande e lento mar, avançou e submergiu suavemente o canto do violoncelo, absorveu-o, ampliou-o como se quisesse conduzi-lo a um lugar onde a música se sublimasse em silêncio, a sombra de uma vibração que fosse percorrendo a pele como a última e inaudível ressonância de um timbale aflorado por uma borboleta."
Este é Saramago, em 'As intermitências da morte', nos descrevendo como a morte se comoveu ante a delicadeza da arte. É tão lindo, tão verdadeiro, tão emocionante, que não me resta mais nada a dizer. Quis apenas registrar aqui...
Eterno Saramago.
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