6.1.13

50 anos em dois dias ou... É ruim, mas é ótimo!

Adoro ler. Sou daquele tipo de pessoa que não se lembra direito de quando nem como aprendeu a ler, mas tenho uma certeza: foi muito cedo. Entrei na escola já alfabetizada, o que me acarretou em 'pular' um ano no percurso normal do aluno daquela época e me condenou a ser a mais nova de todas as classes da qual fiz parte ao longo da minha vida estudantil até a faculdade. Um horror, como todo mundo pode imaginar!...


Sempre li muito, e tenho fases: filosofia, romances, biografias, ficção científica, terror. Sou teimosa, dificilmente largo um livro pela metade, por pior que ele possa me parecer. Dou ao texto inúmeras chances de melhorar e me surpreender antes de desistir dele. Fui recompensada há algum tempo atrás, ao fazer isso com um livro de um autor do qual gosto muito, o norte americano John Irving ("O filho de deus vai à guerra"), que começou chato, com um personagem principal intragável e uma narrativa arrastada, e acabei vendo-o transformar-se em um dos livros mais interessantes que já li.

Não me lembro de nenhuma fase da minha vida em que não me encontrasse com um livro pela metade: estivesse cheia de trabalho, cursando as disciplinas de mestrado e doutorado, desenvolvendo dissertação e tese, preparando aulas... tudo isso foi feito intercalado com um livro que, em geral, não tinha relação com o assunto sobre o qual deveria estudar, escrever ou preparar a aula. Consequência disso, a minha dissertação de mestrado têm por fio condutor um personagem de ficção, o 'Marcovaldo' de Ítalo Calvino; e a minha tese de doutorado apresenta, na abertura de vários capítulos, trechos de literatura que traduzem o período histórico em questão.

Detentora destas características, não é preciso pensar muito para saber o que eu fiz na maior parte de um final de semana no qual permaneci 'enclausurada' em casa, com um dente inflamado, me entupindo de remédio para dor e antiinflamatórios, sem poder falar muito nem comer direito, sem poder beber nada gelado em pleno verão de 40 graus, dormindo mal e irritada até com a minha sombra. Ataquei um livro no sábado pela manhã que me fez intensa companhia durante estes dois dias. O livro em questão é o "50 anos a mil", resultado da parceria do jornalista Claudio Tognolli com João Luiz Woenderbag Filho, o cantor Lobão.

Sempre admirei as posturas independentes de Lobão, adoro a maior parte das suas músicas e percebo com mais clareza hoje - em especial tendo visto o que se tornaram outros grupos ou cantores que eu admirava na época - o quanto ele permaneceu fiel à princípios e modos de agir que certamente lhe obstruíram boa parte do sucesso que ele merecia. É inegável o quanto o tamanho da sua inteligência e a visceralidade das suas escolhas - muitas vezes equivocadas, claro - pautaram o delinear da sua trajetória.

Para além disso, compositores como Lobão, Cazuza e Renato Russo deram voz a uma série de angústias, dores e formas de pensar de uma geração da qual eu faço parte, ao longo dos anos oitenta e noventa. Há aqueles cantores ou bandas que, a meu ver, representaram uma espécie de 'trilha sonora' para esta geração: Titãs, Paralamas, Ultraje... e há os que parecem ter lido nossa alma, espremido nossos anseios, medos e expectativas, e traduzido nas suas canções. Para mim, Lobão sempre fez parte deste segundo time.

Tenho que confessar que, de cara, não gostei da maneira como o livro foi escrito. Apesar da acertada opção de Tognolli em manter o estilo de fala do biografado, suas gírias e maneirismos coloquiais, acho que o texto poderia ser melhor organizado, sem tantas repetições. A escrita é essencialmente jornalística, factual, e, embora se trate de um relato absolutamente pessoalizado, há poucas brechas para que aflore uma emoção real. Temos a sensação de estarmos lendo um relato de alguém que 'pairou' sobre aqueles acontecimentos, embora a narrativa em si seja fascinante. Em resumo, é uma excelente história, mas poderia ser melhor traduzida para o papel. Além disso, a escolha de intercalar o texto narrado na primeira pessoa com colunas intituladas "Lobão na mídia", me pareceu um verdadeiro desastre. A sensação que fiquei é que o jornalista tentava dizer algo como: 'olha, nada disso é invenção minha, ó aqui os jornais confirmando tudo o que foi relatado'. Inevitável me lembrar de Guy Debord e o seu 'Sociedade do espetáculo', no qual o teórico afirma que chegará o dia em que a própria tessitura do real será dada pela sua transformação em notícia. As tais das colunas - que parecem ter sido colocadas ali com o único objetivo de 'comprovação' dos acontecimentos narrados - rompem o ritmo da leitura, repetem informações exaustivamente e cansam a paciência do leitor (em especial uma leitora com sono defasado, dente inflamado e sentindo dor...).

Essa é a parte ruim. O livro poderia - merecia, a meu ver - ser melhor realizado. A parte ótima, porém, supera de lavada esses percalços! Que delícia ler sobre o panorama musical dos anos oitenta e noventa, a efervescência dos pensamentos e a inquietude das almas de toda uma geração! Que coisa legal saber de pormenores como, por exemplo, a razão da canção "vida bandida" começar com o cantor berrando a plenos pulmões 'alô, galera da onze!!!', ou ler sobre os detalhes da composição de "me chama", e o lendário telefonema de João Gilberto às cinco da manhã solicitando permissão para regrava-la. Que emocionante saber os detalhes da gestação de "vou te levar", uma das músicas do cantor quem mais me toca até hoje (e que eu, erradamente, interpretava como uma despedida, o doloroso retrato emocionado - e emocionante - de uma separação).

Enfim, saio deste final de semana com a sensação de que fiz uma viagenzinha até os anos oitenta e noventa, e revivi músicas e situações que me emocionaram, me traduziram, me constituíram, e passaram a fazer parte da minha história. Saio, principalmente, com a sensação da qual fala o cantor ainda na introdução do livro quando diz: "Portanto, não se enganem: o melhor ainda está por vir, pois essa promessa eu fiz aos meus amigos ao pé de suas lápides. E tenham a certeza absoluta de que a cumprirei à risca". 

Se como dizia Júlio Barroso, "o poeta é o traficante da liberdade", Lobão, com suas músicas e sua carreira, conseguiu traficar essa liberdade com beleza, desapego e coragem. Mantendo a promessa de viver os seus cinquenta anos a mil.




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