"O que Bruno von Falk tinha a ver com isso? Não era apenas soldado do Reich. Não estava movido simplesmente pelos interesses do regimento e da pátria. Era o mais humano dos homens. Pensou que procurava, como todas as criaturas, a felicidade, o livre desabrochar de suas faculdades, e que (como acontecia com todas as criaturas, infelizmente, nestes tempos) esse desejo legítimo era a todo instante contrariado por uma espécie de razão de Estado que se chamava guerra, segurança pública, necessidade de manter o prestígio do exército vitorioso."
O trecho acima foi retirado de um romance. Um romance escrito por uma judia. Um romance escrito por uma judia na França em 1942. Um romance escrito por uma judia que foi morta naquele mesmo ano, em Auschwitz.
Irène Némirovsky tinha 39 anos quando foi deportada para a Alemanha e morta no campo de concentração. Deixou, com a filha, as páginas manuscritas de Suite française, um livro que foi publicado 62 anos após a sua morte. Nele, Irène narra, de forma extremamente realista, o período de ocupação alemã na França durante a Segunda Guerra.
É através dos pequenos dramas, das minúsculas histórias das famílias afetadas pela guerra que a escritora torna muito palpável para o leitor o que deve ter sido este período para o cidadão comum, aquele que foi fortemente atropelado por um conflito entre nações que, aparentemente, não lhe dizia respeito.
'Suite francesa' não é um livro sobre a guerra, embora se encontre no cerne dela. É um livro sobre a natureza humana. Vemos, desfilando pelas páginas, situações diversas: a perda dos bens, a perda das vidas, a transformação das cidades e do cotidiano. As pequenas alegrias que passam a funcionar como tábuas de salvação diária, os gestos de solidariedade, as mesquinharias e pequenos conflitos que, no limite, têm o poder de revelar o pior da alma humana.
Mas o que é mais emocionante, na minha opinião, é a forma como Irène, em uma absoluta entrega à escrita, descreve os alemães, os invasores, os 'boches', como eram pejorativamente chamados pelos franceses. Aqueles que eram unanimemente odiados, no relato da escritora, são simplesmente, impressionantemente, surpreendentemente... humanos! Humanos como ela. Humanos como todos.
É o que vemos na descrição que reproduzi acima. Bruno von Falk é um soldado do Reich. Ainda assim... afirma a sua humanidade. Ele quer o mesmo que todos: ser feliz. À semelhança de Shylock - o personagem criado por Shakespeare para o 'Mercador de Veneza' -, que é judeu e reafirma a sua humanidade pela semelhança com outros homens, seus desejos, reações e aspirações, o personagem de Irène também o faz.
Irène sabia que seria deportada. Como judia, antevia que seu fim seria em um campo de concentração. No bilhete que enviou ao seu editor, referindo-se ao livro, ela escreveu: "Caro amigo... pense em mim. Escrevi muito. Suponho que serão obras póstumas, mas isso faz passar o tempo." Ainda assim, conseguiu ter a lucidez de olhar de frente o seu algoz e enxergar a sua humanidade.
Em 1960, Hannah Arendt chocou alguns ao escrever "Eichmann em Jerusalém: um retrato sobre a banalidade do mal", livro no qual relata o julgamento do famoso nazista e o descreve como o que ele realmente era: não um monstro, mas apenas um funcionário. Medíocre, pequeno, banal, cumpridor de ordens. Ela quis tratar, na verdade, sobre a capacidade do Estado de transformar o exercício da violência homicida em um ato burocrático, através da sua tradução em gráficos, estatísticas e metas a serem atingidas. Arendt mostra, através de Eichmann, como as pessoas passam a ser agentes neste processo e não se sentem responsáveis, escondidas atrás da velha e puída cortina de 'eu estava cumprindo ordens'.
Irène Némirovsky, vinte anos antes, conseguiu, de maneira comovente, transformar isso em arte.
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