27.5.12

Uma casa aonde ninguém vai



O cantor Lenine tem uma música na qual afirma que "o medo é uma casa aonde ninguém vai". Embora na maior parte das situações eu até concorde com a afirmação, também reconheço que frequentemente somos obrigados a ir até essa 'casa' enfrentar nossos temores, sejam eles quais forem: dos mais concretos - altura, baratas, mar, cachorros... - aos menos específicos e, por isso mesmo, muito mais difíceis de lidar: doença, solidão, violência, rejeição.
Por outro lado, acredito que há uma 'casa' dessas, metafóricas, aonde muito menos gente vai. Esta casa, na minha opinião, é a vergonha.
Enfrentar medos às vezes pode ser mais fácil do que se pensava de início. Pode ser libertador, pode nos tornar mais fortes, pode mesmo ser motivo de piada tempos depois. A vergonha, embora possa parecer, à princípio, muito menos ameaçadora que os nossos medos, pode ser muito mais paralisante. E pode, por vezes, definir de forma muito mais concreta o que nos tornaremos ao longo do tempo.
Escrevo isso à propósito do filme 'Shame', de Steve McQueen (diretor homônimo do ator), no qual se dividem em cena, de forma primorosa, Michael Fassbender e Carey Mulligan. Eles interpretam dois irmãos que trazem, do passado, uma carga pesada, uma herança indesejada e indizível, sendo apenas insinuada ao longo do filme. O que interessa, no entanto, é a maneira como cada um reage a isso e passa a pautar a sua vida e as suas relações afetivo-amorosas. Da apatia de Brandon, que afoga o seu desespero e a sua vergonha na compulsão sexual, à carência extremada de Sissy, sua irmã, dependente profissional de afeto, venha este de onde vier, vemos duas possibilidades inversas de lidar com a mesma questão que assola aos dois: a atração mútua e o incesto que acena perigosamente a cada vez que se encontram.
O filme é tenso, triste, lindo, pesado. Nos compadecemos dos dois personagens, acompanhando o seu desespero, a sua dor, as suas tentativas de afogar a vergonha nas suas compulsões. Em uma das cenas  mais tocantes da narrativa, quando a busca do sexo incessante não basta mais a Brandon, ele provoca uma briga em um bar, para que, estendido no chão, sangrando, moído das pancadas que levou do sujeito que incitou com alusões pornográficas à sua namorada, consiga, por alguns momentos, sentir algo diferente daquela dor interna tão profunda e tão difícil de assimilar. Pode uma dor ser anestesia para outra?, ficamos a nos perguntar.
O tempo inteiro em que assistimos ao filme, permanecemos nas cadeiras como elásticos esticados, prontos para pular ao menor movimento, sabedores que aquela tensão extrema é insustentável. Quando o desfecho chega, porém, não traz alívio. Traz apenas a certeza de que, com algumas coisas, nunca conseguiremos lidar. Em algumas casas, nunca, nunca conseguiremos ir impunemente. E se formos, talvez não consigamos sair.

10.5.12

Quando Wittgenstein encontrou Pina Bausch

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein faz parte daquela lista famosa dos teóricos que são muito citados, mas pouco lidos. Escritor de uma única publicação, o 'Tratactus Logico-Philosophicus', de 1922, é considerado um dos pensadores mais importantes do século XX. Apesar disso, muitas das suas frases são utilizadas fora do contexto, desvinculadas do restante do raciocínio que as daria o sentido pleno. Há alguns dias, um amigo alemão me enviou um  vídeo do artista finlandês M. A. Numminem, no qual ele brinca exatamente com uma das frases mais conhecidas - e mais citadas - de Wittgenstein: "What we cannot speak about we must consign to silence".
Isso acabou gerando uma conversa a esse respeito, na qual eu defendia que o 'speak' - falar -, pode ser feito de várias maneiras, não apenas através da linguagem que se vale das palavras. Eu defendi então, o conceito de 'expressar' ao invés de falar, e terminei brincando que faltou um divã na vida do Ludwig...
Quando falei em 'expressar', claro, estava pensando naquela que, para mim, é a mais forte forma de expressão: a arte. Quanto de indizível a arte pode conter? Quanto de emoção, quando de dor, de prazer, de alegria, de desolação?... Quantas palavras seriam necessárias para expressar a melancolia de uma tela de De Chirico, a solidão de uma cena de Hopper, a elegância de um móbile de Calder, ou a ternura de um Chagall? E seriam elas suficientes? O que apreendemos com um simples golpe de vista, o que nos atinge em um nível tão profundo, seria tão forte se traduzido por palavras? Não sei, não tenho a resposta...
Mas hoje, finalmente, assisti ao filme de Wenders, 'Pina'. Ou melhor, vou repetir a frase de maneira correta: hoje, finalmente, assisti ao belíssimo (aqui você faz uma pausa e relê a palavra 'belíssimo' cinco vezes, por favor) filme de Wenders sobre a sua amiga, Pina Bausch. E, logo no início do filme, fui surpreendida com as palavras da própria Pina, que parecia estar me respondendo, ao afirmar: "Há situações que te deixam absolutamente sem palavras. As palavras, também, não podem fazer mais do que apenas evocar as coisas. É aí que vem a dança."
O filme de Wenders parece fazer eco a esse pensamento todo o tempo, já que o diretor move-se ao longo de sua obra com um profundo desprezo pelas diferenças entre as diversas línguas que se sucedem na tela, através dos bailarinos da companhia, oriundos de diferentes nacionalidades: ouvimos inglês, francês, alemão, espanhol, japonês, português e italiano. E o tempo todo, fica claro que o idioma é realmente algo secundário: aquelas pessoas se comunicam através de algo muito mais poderoso: a sua dança! 
E, ao final, é novamente a própria Pina que volta para dizer: 'Dancem, dancem, senão estaremos perdidos...", como se dissesse, 'expressem-se!', 'comuniquem-se!',... da forma que puderem!..
Wittgenstein ficaria orgulhoso.

1.5.12

Prestando atenção em cores...

...de um dia de sol. E de um lugar especial.