5.8.13

Encontros urbanos





Em cada cidade aconteceu de um jeito. Com alguns milhares de pessoas, com muitos milhares de pessoas. Com todo mundo vestido de branco, com cores das mais variadas preenchendo as ruas. Com caminhadas pacíficas, com gestos de violência que traduzem toda uma camada da população que cansou de não ser vista - e nem considerada - pela cidade que habita. Cada manifestação que vimos, ao vivo ou pela televisão e - em especial nesses tempos interessantes de mídia ninja - pela internet, teve uma cara toda sua, um jeito todo próprio.

Agora, já passado algum tempo do início das manifestações, vamos conseguindo ver com mais clareza os seus desdobramentos. Temos aqueles mais explícitos, que percebemos logo de cara: a passividade que caracterizava boa parte dos brasileiros deu lugar a um certo 'estado de alerta' no qual as pessoas estão pouquíssimo dispostas a deixar passar em branco situações nas quais se considerem desrespeitadas. Isso diz respeito às decisões políticas que definem os rumos de cada espaço urbano, mas se derrama por diversas áreas. Há algumas semanas atrás, em um supermercado de uma grande rede em minha cidade famoso pelo seu mau atendimento, os consumidores, cansados de esperar nas longas filas e ver mais da metade dos caixas fechados, iniciaram um 'levante', com reclamações coletivas, e os administradores rapidamente abriram mais alguns caixas para atendimento.

Mas, para além destes efeitos mais visíveis, acredito que há outros que vamos percebendo aos poucos. Algo que me chamou muito a atenção, nas manifestações das quais participei, é que passamos à pé por regiões da cidade nas quais costumamos ir apenas de carro ou ônibus. 

Especificamente em Vitória, há uma das pontes que promovem a ligação com o continente, na qual só é possível passar de forma motorizada e pagando pedágio nos dois sentidos. E essa ponte foi um dos principais alvos das pessoas em todas as manifestações - sendo uma das demandas principais do movimento em terras capixabas justamente a extinção do pedágio. 

A 'terceira ponte' - como ela é chamada - é um caso curioso: onipresente na paisagem de boa parte da cidade, ela é um paradoxo de presença versus inacessibilidade, já que as únicas oportunidades de atravessá-la à pé são competições de corrida que a incorporam no trajeto. Para mim foi indescritível a sensação de, junto à massa de pessoas, cruzar seu vão gigantesco caminhando, prestando atenção nos detalhes, sentindo o vento e vendo a paisagem, interagindo com outros passantes, desviando dos skates, bicicletas e patins. Eu, e todas as pessoas que a atravessamos, fomos tomados de um sentimento de estarmos nos apropriando de um pedaço da cidade que nos era negado até então. Pode parecer banal, mas posso garantir: foi emocionante.

Houve outros exemplos: avenidas nas quais passamos rotineiramente de carro e que tivemos a chance de atravessar à pé, prédios públicos nos quais nunca havíamos entrado e que foram ocupados durante dias, praças até então bucólicas que viraram campos de batalha de pedras, balas de borracha e gás lacrimogênio. Mas, acredito que para Vitória, o exemplo mais marcante tenha sido realmente o da nossa ponte. Símbolo maior da nossa conexão com o mundo, ela era como aquele amigo virtual que parecemos conhecer tão bem via computador e que um dia temos a chance de encontrar pessoalmente. E é aí que vamos ver se gostamos realmente dele ou não.

Cem mil capixabas atravessaram a ponte naquela que foi a nossa maior manifestação. Cem mil pessoas foram a um local da cidade no qual nunca haviam estado - ao menos, não daquela maneira. E isso não é pouco. Não é pouco numericamente, não é pouco simbolicamente. Não é pouco para reacender este sentimento que corremos o risco de ir perdendo aos poucos nos dias atuais: aquele que reafirma que a cidade é NOSSA, que deve ter seus rumos definidos de acordo com as necessidades das pessoas que nela vivem, e não do capital imobiliário, do fluxo do tráfego, ou dos interesses das grandes empresas.

Tenho percebido, nestas últimas semanas, sinais deste outro despertar: uma consciência maior a respeito da cidade. Vejo isso com muita esperança de que não seja apenas algo pontual que seja esquecido com o passar do tempo. Gostaria mesmo, que as manifestações, para além das suas consequências políticas, apresentassem essa excelente derivação: a de uma apropriação do espaço urbano como algo que faz parte das nossas vidas. E que, junto com isso, venha também a valorização daquele que - não importa a época - continua sendo o maior sentido da existência de uma cidade: o encontro. 

Alguns pequenos indícios me mostram que talvez possa estar acontecendo isso que eu, internamente, denomino como uma retomada da cidade: um movimento de pessoas que habitam o mesmo espaço e que, de uma hora para outra, se descobrem cidadãos. São mínimas ações que me fazem ter essa esperança: moradores de alguns bairros que começam a apresentar iniciativas de reivindicações de maneira independente das antigas associações comunitárias tão vinculadas aos políticos; questionamentos à decisões de mudanças na cidade que anteriormente nos eram empurradas goela abaixo sem preocupações maiores com a sua aprovação ou não pela população; propostas de ações coletivas de ocupação de espaços públicos. Tenho muita, muita vontade que as nossas cidades passem a ser locais que reúnam cada vez mais ações coletivas, ações que promovam o encontro, não apenas com o mesmo, aquele que vemos sempre nos cinemas, bares e restaurantes, mas entre os diferentes.

Este final de semana participei de uma destas ações: pessoas que se reuniram em uma praça para... desenhar. Algo que poderíamos fazer com mais conforto em nossas casas, algo que poderia ser mais conveniente se realizado como atividade solitária em horário e local à escolha de cada um, mas, paralelamente, algo que fez com que pessoas se conhecessem, pessoas interagissem, pessoas aprendessem umas com as outras. Algo que fez com que os rapazes responsáveis pela limpeza da praça se sentissem à vontade para parar ao lado de um dos desenhistas e demonstrar interesse, perguntar, interagir com um homem que, em outra situação, eles talvez não sentissem que tinham espaço para tal.

São mínimas as atitudes, são mínimos os indícios. Mas, ontem, um gari que talvez nunca tenha entrado em um espaço de exposições, voltou para casa com alguma informação sobre arte. O desenhista saiu dali com a sensação de que despertou o interesse e respondeu as dúvidas de alguém sobre o seu trabalho. E eu registrei um momento de interação peculiar entre dois cidadãos da mesma cidade que, embora vivam próximos, talvez sempre tenham estado separados, cada um vivendo na 'sua' Vitória. Estes dois homens encontraram, naquele situação, uma brecha para o encontro, e transformaram as suas cidades - ainda que por breves momentos - em uma só.

Não resisti ao lindo dia de sol que me proporcionou boas imagens e coloquei mais algumas fotos do domingo.Um domingo de verão em pleno inverno, um domingo de desenhos, um domingo de encontros.



















7.6.13

Pessoas. Cidades.

Pessoas e cidades. Pessoas nas cidades. Cidades de pessoas. Qualquer dessas combinações funciona, qualquer delas me apaixona. Todas atraem meu olhar e minhas lentes. 
Aqui, Berlim e Praga.


























30.5.13

A cidade que não está lá


Isto que se vê aí na foto é uma parte do pouco que restou de Lidice, uma pequena cidade a alguns quilômetros de Praga, capital de República Tcheca. Em 1942, Lidice teve todos os seus homens mortos, as mulheres enviadas para campos de concentração e as crianças encaminhadas para famílias alemãs, para que fossem criadas como membros da 'raça ariana'. As construções da vila, e até mesmo o cemitério, foram intensamente bombardeados, de forma a que não restasse absolutamente nada de pé. Nas palavras de Hitler, a cidade deveria "desaparecer de qualquer mapa".

Lidice, na verdade, foi a cidade escolhida para servir de exemplo e castigo, simbolizando a vingança pelo assassinato do braço direito do Fürer, Reinhard Heydrich, que estava na República Tcheca e tinha por missão dominar toda a região da Bohemia. Em 27 de maio de 1942, dois paraquedistas treinados na Inglaterra - o eslovaco Jozef Gabčík e o tcheco Jan Kubiš -, cercaram o carro de Heydrich nas ruas de Praga e o assassinaram. A operação foi toda cercada de lances dramáticos: a arma de Josef emperrou na hora em que ele, postado em frente ao carro que transportava o nazista, iria atirar. Jan, então, atira uma granada no Mercedes, enquanto Josef foge.

Heydrich, comprovando o ditado de que "vaso ruim não quebra fácil", não morre na hora, e ainda teima durante duas semanas no hospital, até sucumbir a uma septicemia, devido aos estilhaços da granada que penetraram no seu abdômen. A partir da sua morte, duas operações são deflagradas pelo Reich: a primeira era a de descobrir quem tinham sido os responsáveis pela emboscada e matá-los sucintamente. A segunda, com um sentido mais 'pedagógico' para o povo tcheco, foi exatamente o banimento de Lidice do mapa, como um recado para que se a submissão não fosse completa, o mesmo poderia acontecer a outras cidades, ou até a capital, Praga.

A cidade foi bombardeada, todos os habitantes adultos foram assassinados, fosse na hora, fosse mais tarde, em campos de concentração. As mulheres viram os seus maridos serem arrastados de casa e fuzilados, todos juntos, em um mesmo galpão. Não fosse o bastante, tiveram seus filhos arrancados de seus braços e, sem saber o que aconteceria com as crianças, foram embarcadas para o campo de concentração de Ravensbrück. Ao final do macabro dia 12 de junho de 1942, o saldo em Lidice era de 173 homens assassinados, 203 mulheres embarcadas em trens, e 105 crianças deslocadas para outras famílias. Mulheres que estavam grávidas foram conduzidas ao hospital (o mesmo que Heydrich morreu) e tiveram seus abortos forçados. A cidade morreu. Ao menos, fisicamente.




Visitei Lidice em um lindo dia de sol no final de maio. A paisagem muito verde, já florescida pela primavera, contrastava abertamente com a pesada história do lugar. Os tchecos - acertadamente, na minha opinião - optaram por manter o local do bombardeio exatamente como ficou depois do episódio: um descampado com alguns destroços marcando o local de algumas das construções. Um belíssimo monumento tenta retratar o desamparo das crianças, colocadas todas juntas, sem saber o que iria acontecer com elas.







A autora da obra captou, à perfeição, o que deve ter sido a expressão daquelas crianças, que em uma manhã de junho, viram o mundo como conheciam até então ser esfacelado: atônitas, separadas de suas mães, órfãs de seus pais que haviam sido mortos mais cedo, sem saber qual seria o seu destino, certamente sem entender o que estava acontecendo.


Hitler, certamente atingiu seu objetivo: varreu a Lidice concreta do mapa. Mas, ao fazer isso, construiu uma cidade muito mais forte do que aquela feita de pedras. Uma cidade simbólica foi - paradoxalmente à destruição da real - erguida pela fúria devastadora do austríaco. E esta não conhece fronteiras, não conhece dimensões, não respeita vontades de tiranos ensandecidos. Lidice não está lá. Ao mesmo tempo, não podia estar tão presente.

A Lidice que vemos hoje nos emociona, nos comove, nos faz ter raiva, nos envolve com histórias de pessoas que sequer sonhamos conhecer. Cumpre, assim, o verdadeiro papel de uma cidade: construir relações entre os seres. 

A Lidice que vemos hoje no local da antiga é uma cidade na qual uma mãe leva a sua filha para que ela deposite ali, aos pés daquelas crianças cujo paradeiro desconhecemos, daquelas crianças que, em outro tempo, poderiam ter sido ela própria, um brinquedo. Um símbolo de que a vida (sempre!) continua e de que aquelas crianças e aquela cidade jamais serão esquecidas.




Esta história continua. Me apaixonei por todo o episódio, e, como boa obsessiva, fui atrás do que aconteceu na outra operação do deflagrada pelo Reich: a punição aos culpados pelo assassinato. Este será assunto para um próximo post. 

Esta narrativa vai atravessada por um agradecimento especial a um apaixonado por história como eu, que me apresentou à história de Lidice e me levou para conhecer a cidade. Danke schön, Sérgio!

21.5.13

Um muro que continua a fazer política

Não é preciso falar para ninguém sobre a importância do Muro que cortou Berlim em duas partes por tantos anos. Um muro que causou mortes, separou pessoas, partiu famílias, cindiu a economia e que dividiu - mais que uma cidade - o mundo, em duas metades. Mais que um simples muro, um instrumento de política.

Depois de 1989, o muro tão temido virou outra coisa: os seus milhares de pedacinhos, verdadeiros ou falsos, são vendidos hoje por toda Berlim como souvenirs para turistas afoitos por levarem para casa "um pedaço da história".

Resiste ainda, além de pedaços esparsos preservados por locais diferentes da cidade, uma grande parte do muro original, que ficou conhecida como East Side Gallery. Ali são expostas pinturas, feitas diretamente em cima do antigo muro, a maioria imbuída de alguma referência no sentido de não repetirmos a história que permitiu aquela divisão.

Mas, apesar de absolutamente esvaziado do seu sentido político original, o Muro ainda permanece sendo o local no qual muitas manifestações são feitas, normalmente escritas sobre as pinturas. Temos desde apelos como "Liberdade para Julian Assange" até referências saudosas à existência de uma Berlim dividida pelo Muro. Pois é, unanimidade é coisa rara, especialmente em se tratando de política...

Mas o que eu não esperava era ver, exatamente na famosa pintura de Dmitri Vrubel que reproduz a foto do - mais famoso ainda - beijo entre Brezhnev (Secretário Geral do Partido Comunista Soviético) e o então Presidente da Alemanha Oriental, Honecker, uma manifestação, digamos... tão brasileira.




A expressão que ficou tão famosa no Brasil, "Beijos para Feliciano", ganhou outra dimensão...





... e ali, pertinho da orelha do Brezhnev, aquilo que todo mundo no Brasil já sabe: "Feliciano não me representa". Meus aplausos ao senso de humor e espírito crítico do autor!

ps: o link da East Side Gallery que está acima conduz para o site oficial deles, que está todo em alemão. Não é uma piada de mau gosto minha, desça um pouco a página e coloque o vídeo para rodar. É longo, mas tem uma panorâmica completa do pedaço que restou do Muro de Berlim. Algumas dessas obras não existem mais, elas se renovam com o tempo, mas vale a pena ver o vídeo.

10.5.13

Os anjos sobre Berlim


Em 1987, o diretor alemão Wim Wenders fez o filme "Der himmel über Berlin" (O céu sobre Berlim), que no Brasil foi lançado como "Asas do desejo". Nele, anjos passeiam pela cidade, sempre em cima de prédios e monumentos, invisíveis aos olhos humanos. Acompanham as nossas vidas, as dores e amores, as histórias e as desilusões, sem poder interferir.

Inevitável me lembrar dos anjos de Wenders ao estar na cidade. Confesso que olhei com atenção para o alto, na tentativa de vê-los. O que vi, em um primeiro momento, foi apenas o título do filme: o céu sobre Berlim. 

Mas, eis que, hoje, saindo de um prédio, olho de novo para cima e... eu vi! Não apenas um, mas vários! Há séculos eles estão lá, impassíveis, só nos olhando. Vendo tudo: a nossa correria diária, o nosso comportamento, as nossas besteiras, os nossos encontros e os desencontros também. E, como os anjos do filme de Wenders, sem poder fazer nada para interferir! Sem poder segurar aquele que vai ser atropelado só um pouquinho mais de tempo na calçada, sem poder acalmar aquele outro antes que saia da sua boca algo do qual ele se arrependerá, sem poder dizer para aquele rapaz que se ele não for atrás daquela moça agora, vai perdê-la para sempre... Muito dura a vida desses anjos.












E, é claro, não podia faltar aquele, o mais importante, o que toca o coração de todas as pessoas que amam o cinema: a linda dama que servia de pedestal para os anjos de Wenders.



3.5.13

As paixões que dão tempero à vida

Adoro história. Bom, nada a estranhar, não seria professora de História da Arte se não amasse ambas: a arte e a história. E como toda pessoa que gosta de história, tenho meus períodos preferidos. Tenho fascínio pela história medieval, pelo século do renascimento italiano, pelos tempos do Iluminismo francês, pela Belle Époque que marcou a virada do século XIX rumo ao XX. Os anos da Segunda Guerra Mundial, porém, estão no topo da minha lista pessoal.

Acho que para todos nós que temos a exata dimensão de que devemos o que somos hoje - de bom e de mau - a este período conturbado, e ao desenho de mundo que resultou dele, este é um momento que atrai a atenção. Já li muito coisa, já visitei vários locais que foram importantes naquele momento, já vi museus que recriam com fidelidade o período (um dos mais interessantes e completos, na minha opinião, é o musée de l'armée, em Paris).

Mas, sobretudo, me chama muito a atenção a profusão de material imagético - fotografias e filmagens - sobre a Guerra. A Segunda Guerra foi a primeira na qual as imagens, já estabelecidas como forma de linguagem, se espalharam pelo mundo e pela história; dando uma noção bem aproximada de como foram aqueles anos. 

Acho fascinante pensar nisso: enquanto milhares estavam se deslocando de seus países, armados até os dentes, treinados para lutar; outros fizeram o mesmo, armados apenas... com câmeras! E, para mim, é sempre motivo de espanto constatar: essas pessoas estavam arriscando as suas vidas da mesma maneira que os soldados. Ou talvez, até mais, já que as suas 'armas' não lhes serviam para defesa. Vejo documentários sobre aquele período e, junto com o fascínio natural de tentar imaginar como tudo se passou, há, atravessado nisso, um outro sentimento. Algo como: 'cara, o mundo tá acabando em volta do sujeito e ele lá, só com uma câmera!'. Não consigo evitar de me emocionar.

E hoje me vi novamente tomada por esta sensação, ao assistir um belíssimo trabalho do cineasta George Stevens, que foi para a França especialmente para registrar o desembarque dos Aliados na Normandia. Esse documentário é uma pérola, e, além de tudo, colorido, o que era raríssimo nas cenas de registro do conflito neste período.





Achei uma versão integral de "D day to Berlin" no Youtube e resolvi compartilhar aqui. Está em inglês, sem legendas, mas mesmo para quem não tem o domínio da língua vale a pena. Vale a pena por pela delicadeza de algumas cenas, pela crueza de outras; pela humanidade que vemos aflorar nos soldados ouvindo Glenn Miller nas horas de descanso; pelo humor que alguns demostravam, a despeito de estarem em meio ao inferno; pelo horror - e, ao mesmo tempo, uma estranha espécie de beleza - das cidades devastadas pelos bombardeios. Vale a pena, sobretudo, por ser o resultado do trabalho de homens que desempenhavam suas atividades rotineiramente nos seus seguros estúdios de cinema e, de repente, se viram em meio às balas e aos bombardeios, 'apenas' para registrar tudo. Vale a pena pela paixão que está por trás de cada cena, e pela estranha capacidade de nos transportar através do tempo e da história que estas imagens parecem ter.




14.4.13

Colocando alguns pingos em alguns "i"s

Uma das coisas mais legais de ser professora é que isso me proporciona contato com pessoas muito diversas entre si, e muito diferentes de mim. Acho esse aspecto da minha profissão fascinante e enriquecedor, já que estamos muito acostumados a conviver na maior parte do tempo com aqueles que são muito semelhantes à nós mesmos. Em sala de aula, em especial de uma instituição pública de ensino, vejo de tudo: alunos mais novos e alunos mais velhos que eu. Alunos que querem seguir aquela profissão e outros que vêem aquele aprendizado apenas como mais uma etapa de muitas. Alunos muito religiosos e outros ateus. Alunos mais progressistas nas suas opiniões políticas e outros mais conservadores. 

Conviver com tanta diversidade exige um certo jogo de cintura em relação à algumas questões e, às vezes, um elevado grau de contenção das minhas opiniões pessoais. Com o tempo e a experiência, aprendi - ao menos naquele tempo em que estou dentro da sala de aula - a me manter longe de alguns assuntos: aborto, pena de morte, religião, dentre eles. Dizer que sou totalmente a favor do primeiro, radicalmente contra o segundo e passo o mais longe possível do terceiro, em geral causa desconforto - quando não, uma tentativa bem intencionada, mas não desejada por mim, de me fazer mudar de opinião. Essas situações me fazem perceber com muita clareza o quanto não estamos acostumados a conviver com as diferenças, e agimos, em muitas situações, como se estas nos agredissem. Já observei, em algumas situações, que a simples menção da minha opinião sobre algum tema tem o poder de ofender a determinados interlocutores.

Estamos atravessando, no Brasil, um momento de acirramento de algumas posições religiosas e/ou políticas que desperta a atenção. Em função de diversas situações ocorridas nos últimos meses, o que temos visto são indivíduos cada vez mais aferrados às suas posições - e usando argumentos cada vez mais radicais para defendê-las. Tenho constatado, então, que essa dificuldade em lidar com opiniões diferentes das nossas vêm atingindo níveis  altos e causado uma série de desentendimentos entre as pessoas. 

O problema neste acirramento é que muitas vezes, se perde o foco e lança-se mão de qualquer coisa para se encastelar nas suas próprias posições e defende-las como as corretas. E isso empobrece a discussão, gera argumentações simplistas e enfraquece a Política, aquela com letra maíuscula, que, se verificarmos no dicionário, veremos que tem como uma de suas definições "a arte de se relacionar com o outro". 

Nesse sentido, os 'relacionamentos' que tenho visto, vêm se pautando pelo desrespeito, pela grosseria e por uso de argumentos tão preconceituosos quanto as atitudes daqueles que, por vezes, desejam combater.

A partir dessa introdução, deixa eu tentar ser mais clara a respeito do que estou falando, pontuando algumas questões:

Há algum tempo, a deputada Myrian Rios apresentou um projeto de lei baseado em seus valores religiosos. O projeto era verdadeiramente um retrocesso e ela foi execrada em diversos meios com argumentos do tipo: 'ah, já posou nua e agora vem se fazer de santa'. O problema é que essa postura, a meu ver, é tão nojenta quanto o projeto apresentado por ela. O que interessa não é ela ter posado nua. O corpo pertence à ela, e ela pode dispor dele como quiser, a qualquer tempo. O problema verdadeiro era o fato de que ela propunha um projeto de lei que visava impor à sociedade o financiamento público à instituições religiosas para a realização de atividades cuja esfera de abrangência e importância não iria além dos seguidores daquela doutrina. E ela é uma representante de pessoas das mais variadas crenças.

Da mesma maneira, em relação à uma questão mais recente, o importante não é que o deputado Feliciano possa ou não ter tendências homossexuais, como tenho visto em tantas postagens das redes sociais que atacam o alisamento do seu cabelo ou o fato dele ter admitido entrar em sites gays (e, estranhamente, ficar chocado com as fotos de homens nus!). O cabelo do indivíduo é um problema dele, assim como os sites que escolhe clicar ou não. A sua orientação sexual não nos diz respeito, ainda que ele tenha ganho notoriedade com declarações absurdas contra homossexuais e negros, dentre outras categorias, e isso pareça a muitos de nós um contrasenso. Nada disso é realmente importante. Não se escolhe - ou não se deveria escolher - um legislador fundamentando-se na sua orientação sexual, já que esta não o torna melhor ou pior deputado, ou prefeito, ou presidente. 

O importante nesta situação é o fato de que o deputado é um criminoso - como já ficou provado em vídeos nos quais se vê a sua exortação para que os fiés lhe divulguem as senhas de seus cartões bancários. 

O importante também é o fato de que ele é - ou deveria ser - um representante da vontade popular, e não dos interesses ou dogmas da sua religião, seja ela qual for. O importante é que ele jamais deveria estar atuando na comissão para a qual foi designado, já que as suas posturas pessoais contrariam amplamente os objetivos da comissão. 

Da maneira semelhante, tenho visto comparações entre as igrejas evangélicas e a católica, afirmando que, da mesma forma que o deputado Feliciano condena a união civil entre pessoas de mesmo sexo, o Papa também o faz. Ora, estranho seria se fosse diferente! Religiões, sejam elas quais forem, vivem de dogmas, e dogmas não são questionáveis. Mas o Papa é um líder simplesmente religioso, não um político representante de pessoas de vários credos. O que importa aqui, é que a escolha da religião é uma opção do indivíduo. Mas o cumprimento das leis não é. E as leis de um país não devem - e não podem - se submeter às crenças ditadas por qualquer dogma religioso. 

Deixar isso claro esvazia o discurso de 'perseguição' tão presente entre os representantes das religiões evangélicas, por um simples motivo: ninguém tem nada a ver com a religião deles. Esta é uma escolha legítima. Escolhe-se a religião com a qual se tenha afinidade e permanece-se nela única e exclusivamente por esta mesma afinidade. O que não é cabível e tentar fazer os dogmas de cada religião valerem para um país. Leis não são opcionais. Têm que ser seguidas. E seguir uma lei que foi definida em função de um preceito religioso é um desrespeito com a parcela da população que optou por não fazer parte daquela religião. Ou de religião nenhuma, como é o meu caso.

E é exatamente por causa disso que o Estado tem como um de seus fundamentos a laicidade. Um Estado laico é um Estado que respeita seus cidadãos, e as suas diferentes opções de como devem levar as suas vidas. Um Estado laico é uma absoluta necessidade nestes tempos de acirramento de discursos que estão beirando a violência. Assim como um pouco de bom senso.



24.3.13

Das grandezas e pequenezas da vida

Platéia e palco escuros. Uma luz forte se acende em uma das laterais, revelando o perfil de um homem. Meio maltrapilho, maquiagem de palhaço, postura ereta, ele começa o seu monólogo e conta a sua história. A angústia de um palhaço sem circo, a narrativa de uma vida que não encontra mais seu lugar e seu tempo no mundo. E finaliza a sua fala com palavras que dizem mais ou menos assim: 'Como um palhaço, eu vivo do erro. Estou acostumado a fazer as pessoas rirem com as minhas falhas: a tropeçar, a cair, a sentar em cadeiras que já foram tiradas de trás de mim. Não sei trabalhar com os acertos, o erro é a minha vida. Mas esse mundo de hoje não admite mais o erro, só quer saber de acertos. Não tenho mais lugar nele.'

A cena é do espetáculo "O grande circo ínfimo", do Grupo Z de Teatro. O roteiro reúne personagens que, por um motivo ou outro, não 'cabem' mais no mundo contemporâneo. O antigo dono do circo virou cafetão, e agencia a ex-bailarina, que virou puta. Em meio a isso, o palhaço, que se recusa a mudar -  porque, afinal, como ele afirma exaustivamente: "eu sou um palhaço... de circo!" - não encontra um espaço que o acolha. Cruéis metáforas para várias das transições que vemos acontecer com pessoas, coisas ou sentimentos considerados 'supérfluos', 'ultrapassados', e 'sem utilidade' nos nossos tempos. 

Vamos nos adaptando, e tentando nos acostumar com uma realidade que vai se tornando cada vez mais objetiva, cada vez mais funcional. Cada vez mais pobre. Tudo precisa ter uma utilidade e, se não tem, não possui mais lugar. Nem tempo. E vamos abrindo mão das pequenezas que davam tempero à vida, coisas que não cabem mais nesse tempo que, como apregoa o ditado capitalista, "é dinheiro". Nessa adaptação, a arte vira negócio, a beleza se traduz pelo consumo, o prazer deixa para trás as suas formas delicadas e tem que ser aquele palpável: o prazer do corpo. 

Nesse percurso, os sentimentos vão se empobrecendo, se esgarçando e se perdendo. E nós, vamos vivendo, e nos consolando ao 'nos contarmos' que o que ficou para trás são coisas pequenas, detalhes que "não fazem diferença". Mas, se o arquiteto alemão Mies Van der Rohe tinha razão ao afirmar que "o sublime está nos detalhes", podemos ter, a partir dessa frase, uma noção do que perdemos. Perdemos o sublime da vida.

Mas aí, alguém, um dia, nos detém e nos pergunta: 'mas então, o que faz diferença para você?'. E, se prestarmos atenção na pergunta, e se realmente pararmos para tentar respondê-la para nós mesmos, veremos que não é uma tarefas das mais simples. 

Foi essa a pergunta que traduziu, para mim, todo o belíssimo espetáculo do Grupo Z. É ela a 'grande pergunta ínfima' que, ao deixarmos a sala escura,  permanece, reverberando nas nossas mentes e, quem sabe, nas nossas vidas.



28.2.13

Cidades de pedra, cidades de carne


Há algum tempo atrás, uma conhecida marca de cosméticos apresentava uma publicidade na qual uma modelo - devidamente munida de todos os recursos que aquela empresa podia oferecer para melhorar a sua aparência - saía às ruas e, à medida em que a moça passava pelos lugares, tudo ia se tornando mais 'bonito'. O cachorro que antes tinha uma carinha suja e despenteada parecia que tinha acabado de sair de um pet shop. O sujeito mal vestido ficava elegante. E a cidade... perdia seus graffitis e ganhava muros brancos!

O conceito que embasa a concepção deste anúncio sempre me intrigou: afinal, a cidade bonita é aquela que tem muros brancos? 

Podemos, de início, achar que é uma bobagem: 'ah, deixa de ser chata, é só uma propaganda!...' O problema é que - e podemos comprovar isso em diversas situações -, representações são capazes de criar realidade. Assim, se vejo, continuamente, uma situação sendo apresentada pela mídia como normal, bonita, adequada, desejável, acabo considerando-a assim. 

O contrário também vale: quantos de nós passamos a deixar de achar 'normal', por exemplo, uma pessoa acender um cigarro ao nosso lado no restaurante ou avião? Nada, objetivamente, na cena modificou-se: os ambientes são basicamente os mesmos, os cigarros têm o mesmo odor, as pessoas continuam fumando como sempre o fizeram. Mas... de repente, já não é mais normal o sujeito que sentou ao meu lado no avião se sentir à vontade para fumar a viagem inteira. O que causou esta mudança? Dentre outras coisas (as leis de proibição, etc...), uma das mais importantes foi a forma representação que passou a ser feita sobre os fumantes, em especial, sobre os que fumam em locais públicos e fechados. De uma hora para outra, essas pessoas perderam o status de 'charmosas' e passaram a portar o de 'sem noção'.

Por reconhecer essa relação entre representação e constituição da realidade, costumo prestar muita atenção nas maneiras através das quais as representações a respeito de determinadas situações são constituídas. Desenvolvi toda a minha tese de doutorado a respeito disso: como o cinema vê a cidade, como a cidade incorpora este olhar nas suas formas de se comportar em relação às mais diversas situações. E, sobretudo, presto muita atenção nas maneiras através das quais as mídias tratam determinados assuntos. 

A publicidade, como no exemplo através do qual abri este texto, é uma das maneiras mais poderosas de criar realidade. Afinal, o sujeito está lá, despreocupado (leia-se 'desprotegido'), jogado no sofá, procurando um pouco de entretenimento na televisão, e é 'bombardeado' por padrões de normalidade, de consumo, de desejos. Padrões estes que, após algum tempo sendo submetido a eles, é necessário ter um espírito crítico muito apurado para não sucumbir ao que estão apregoando. E o que é vendido por uma publicidade vai muito além do produto que ela busca diretamente promover. Ali são construídos parâmetros: do que é aceitável e, sobretudo, do que é desejável. Talvez por causa disso sempre tenha me irritado com a tal da propaganda da empresa de cosméticos: porque não desejo uma cidade composta por muros brancos!

Quero uma cidade colorida. Quero uma cidade na qual todos tenham a possibilidade de se manifestar. Quero uma cidade que 'fale'. Ainda que seja para dizer coisas sobre as quais discordo. Quero uma cidade que seja feita de carne, e não apenas de pedra! E 'carne', neste caso, é a nossa carne, é a carne, e o sangue, e o ritmo, e a alma, de quem transita pelas suas avenidas, divide o seu chão, compartilha das suas maneiras de se expressar, seja na fala, seja nas outras maneiras, das quais a arte é uma das mais poderosas.

Ontem aconteceram na minha cidade duas coisas que me chamaram muito a atenção: a primeira delas é que a nova administração municipal resolveu 'limpar' os pontos de ônibus. Até aí, tudo bem. Quando vi, no jornal à noite, a manchete que anunciava a notícia, até pensei: 'ah, que ótimo, como todo esse pó de minério e poeira do trânsito eles devem andar merecendo uma limpeza mesmo!...' 

Mas, engano meu: a tal 'limpeza' era tirar dos pontos os graffitis que foram feitos ali por artistas urbanos. Pior ainda: alguns destes trabalhos eram resultado de um edital de incentivo cultural feito pela própria prefeitura! ('ah, mas foi na gestão anterior, isso não deve ser considerado!...').

Bom, isso, por si, já me deixou indignada. Mais que isso, me deixou triste. Mostra, dentre outras coisas, um pensamento sobre o espaço público que parece andar na contramão de tudo o que se discute atualmente na gestão das cidades. Então, parece que é assim: tira da rua tudo o que os gestores da nova administração não acham que deva estar lá. O viciado que está na esquina? Tira! (tira, mas não oferece tratamento digno). O morador de rua? Tira! (leva para um albergue, ou pior, paga o transporte para fora da cidade, mas igualmente não lhe permite condições adequadas para que saia das ruas e passe a ter uma moradia decente). A arte? 'Ah, eu não gostei desses graffitis, apaga isso aí...'. 

E a cidade vai ficando calada, chata, excludente. Cidade de poucos, cidade de ninguém. Cidade na qual eu não me vejo, e não vejo a maioria das pessoas com as quais eu convivo. Cidade que vai, aos poucos, deixando de ser CIDADE, essa, com letra maiúscula, que tem por objetivo oferecer o palco para a expressão da diversidade, das múltiplas vozes, cores e formas. Cidade que vai se transformando na Vitória (desculpem o trocadilho, mas foi mais forte que eu... :) ) da chatice, da burrice, da mesmice, do raciocínio totalitarista.

Bom, mas eu disse que foram duas as coisas que chamaram a minha atenção: a primeira foi essa atitude da administração municipal. A segunda foi a maneira como os veículos de comunicação ESCOLHERAM (e aqui é importante frisar: é uma escolha. Sempre é.) apresentar a notícia. Como 'limpeza' das ruas. Como assepsia da cidade. A sensação é a de que copiaram o release enviado pela prefeitura e leram no ar. E, me desculpem os meus - muitos(!) - amigos jornalistas: isso não é jornalismo. Isso é servir de veículo para informações que este ou aquele interesse (seja empresarial, seja de uma administração municipal) desejam que seja repassada. Isso é empobrecer - e envergonhar - uma profissão que deveria ser atravessada antes de tudo por uma dose cavalar de senso crítico, uma profissão que já teve um papel tão decisivo nos rumos passados do país.

No momento em que o raciocínio vigente não consegue mais enxergar a realidade de um ponto de vista crítico, confesso, entristecida, que eu começo a perder a esperança...