19.12.12

Desabafo

Gosto de gente que fala coisas que eu consigo entender.
Gosto de quem é direto. Não precisa escrever bem. Isso já seria um bônus. Não quero (sempre) literatura, embora a ame de todo o coração. Quero quem fale o que tem a dizer. Direto. Sem tergiversações. Sem firulas. Sem cortinas de fumaça. É isso. Pronto.
Não gosto de quem se faz hermético por prazer de ser 'difícil'. Ou, pior, pelo receio de ser compreendido na sua pequenez. Poucas coisas me irritam mais do que essa confusão que é muito comum: 'não entendi, o sujeito que fez deve ser muito inteligente'.
E detesto quando me engano. Começo a ler - ou a ouvir, ou a assistir -, em um primeiro momento parece que tem algo ali, mas é que nem algodão doce: a gente coloca um montão na boca e acaba com uma pastinha de açucar minúscula.
Abomino gente que tem opinião sobre tudo. Da crise no Oriente Médio ao novo disco daquela banda mega alternativa, o sujeito tem algo a dizer.
Gosto de gente que encara o mundo sem véus, sem se esconder atrás de palavras que podem encher os olhos, mas que, a um olhar mais atento, se revelam no que são: camadas protetoras. Air bags de sentimentos. Protetores covardes contra ela: a vida.
Quero olho no olho, voz inflamada, paixão explícita, ainda que seja para discordar de mim. Antes um opositor honesto - e que creia, sinceramente no que defende, mesmo que eu possa achar um absurdo - do que alguém que sai pela tangente, vai até a página vinte e desiste.
Hoje li uma frase bobinha no facebook que teve o poder de me fazer parar prá pensar: 'a vida é muito curta para cafés ruins'. E eu... concordo, ple-na-men-te! Substituindo os 'cafés' por qualquer outra coisa, decidi fazer desta frase minha resolução/lema/ bandeira para 2013.
Pronto, desabafei!...

17.12.12

Is the end...

... of the world as we know it and I feel fine...


Andei pensando - como todos nestes últimos tempos - na tal profecia dos Maias que prega que tudo se acabará daqui há alguns dias. E, pensando bem, essa história de fim do mundo é uma coisa bem saudável. Finais são saudáveis. Doem algumas vezes, dão medo em outras, mas sempre nos fazem olhar em volta, reavaliar, mexer naquilo que não está assim tão bom, mas que deixamos como está, porque,... 'ah, você sabe né, não está tão ruim afinal'.... e assim seguimos, justificando para nós mesmos a nossa preguiça ou pouca disposição em modificar o que nos rodeia, em sair do lugar, em dar reviravoltas. Até que o Final, aquele com letras maiúsculas, nos atropela sem aviso prévio e zera nossas contas, muito provavelmente nos deixando com aquela cara de 'ué, acabou?...'.
Assim, pequenos finais - ainda que apenas fictícios - têm esse aspecto positivo: nos tiram da nossa zona de conforto. E nos acenam com novas oportunidades, possibilidades, retratos de vidas alternativas novinhas nas quais podemos consertar o que ficou errado, fazer melhor o que foi mal feito, dar mais atenção ao que passou despercebido e colocar tudo na devida perspectiva.
Gosto da idéia de que, a qualquer momento, ou em um momento que escolhemos a dedo, podemos dar fim a algo e abrir caminho para outros inícios. Gosto de ritmos: a sequência das estações e as mudanças climáticas, os finais de ano nos quais nos enganamos que a partir dali será tudo diferente, o final do mês no qual sabemos que daqui a alguns dias um salário inteirinho estará à nossa espera, pronto para ser usufruido, o final da semana que temos todo para fazer o que quisermos. Gosto da perspectiva de ter pequenos e grandes finais, e, sobretudo, de pequenos e grandes começos.
Sou professora e, no meu trabalho, essa sempre foi, a meu ver, uma enorme vantagem: meu percurso tem início, meio e fim. A cada semestre, tenho, junto com novos alunos, uma outra oportunidade de fazer melhor o que fiz mais ou menos, estudar mais os pontos que achei fracos, reavaliar todo o processo para fazer de maneira mais eficiente. 
Experimentar finais que são sempre uma possibilidade de recomeço. Até o dia em que venha o final definitivo. Que nesse dia, possamos olhar para trás sabendo que fizemos muitos 'ensaios' de finais, começos e recomeços, que nossos medos não tenham nos paralisado e nossas experiências tenham sido suficientes para se sobreporem aos nossos arrependimentos. 
Afinal, como diz a música do R.E.M., qualquer dia pode ser o fim do mundo tal como o conhecemos... e, que se assim o for, que seja como sonhou Montaigne: "que a morte me encontre plantando as minhas couves sem pensar nela e menos ainda na imperfeição da minha horta".
Um feliz final do mundo para todos!




26.11.12

Um mundo revelado



O pensador francês Guy Debord, em sua obra mais conhecida, 'A Sociedade do Espetáculo', preconizou - ainda em 1967 - algo que vemos acontecer muito fortemente hoje: a vida em um mundo banalizado pelas imagens. Uma realidade na qual tudo é passível de se tornar 'espetáculo', e esta transformação seria exatamente o que conferiria o caráter de realidade aos acontecimentos.
Debord desenvolveu a sua teoria há quase meio século, quando ainda não tínhamos o acesso fácil à todas as tecnologias de registro de imagem que possuímos hoje: câmeras digitais com resoluções cada vez maiores, celulares que nos permitem fotografar e filmar (e enviar em tempo real para sites, amigos e redes sociais) tudo o que acontece ao nosso redor, possibilidades quase ilimitadas de incorporar o registro de imagens em nosso cotidiano.
No tempo em que o francês escrevia, registrar uma imagem ainda era algo que exigia atravessar algumas etapas: alimentar uma câmera com um filme, registrar as fotos desejadas, rebobinar o filme, levar para revelar, esperar alguns dias até poder conferir o resultado. Para a nossa percepção moderna, acostumada a verificar a imagem imediatamente após o 'click', parece impensável esperar tanto para saber o resultado imagético daquele apertar de botão de algum tempo atrás.
E quando esse resultado nem mesmo é conferido? Qual seria o sentido de fazer milhares de fotos e nunca revelar nenhuma? Qual a paixão necessária para encher rolos e rolos de filmes fotográficos ao redor de vários países do mundo e... nunca - sim, eu disse nunca - colocar nenhum deles para ser copiado em papel?
Então, essa é a hora da historinha. Vamos lá:
Era uma vez uma mulher. 
Poderíamos descrever essa mulher rapidamente como uma americana, que nasceu em NY na década de 20, morou na França algum tempo e quando retornou aos Estados Unidos passou o resto da vida trabalhando como babá.
Pronto, contamos a história de uma vida, a história de uma mulher. Mas Vivian Maier foi muito mais que uma mulher que gostava de crianças e escolheu trabalhar cuidando delas. Ela foi uma mulher dotada de um olhar. De uma sensibilidade apurada. De um senso estético raro.
Maier passou boa parte da sua vida fotografando. Começou pela sua cidade, depois resolveu tirar uma licença de seis meses do trabalho e saiu pelo mundo, olhando e registrando imagens.
Depois de sua morte, deixou dívidas. Por causa delas, alguns de seus bens foram à leilão. Neste leilão, os filmes foram comprados por um pesquisador que procurava por imagens que lhe ajudassem em seu trabalho sobre a história de um dos bairros de Chicago. 
Isso foi em 2007. A partir daí, Vivian Maier passou a existir para o mundo.
As suas fotos são criativas, com belos enquadramentos, ângulos fortes e temas variados, que gravitavam em torno de uma questão central: cidades. Da arquitetura angulosa aos sem-teto nas ruas, passando por casais amorosos e crianças em gestos espontâneos, a fotógrafa registrou cenas diversas.
É através destas cenas que podemos, hoje, nos apaixonarmos pelo que ela viu, pelo seu olhar que criou estas cenas, pela sua percepção que filtrou e selecionou estas paisagens urbanas e humanas, 'enfiando-as' em pequenos rolos de filmes para que, tantos anos depois, o seu mundo e o seu olhar nos fossem revelados. 
Rolos de filmes que poderiam ter ido parar no lixo, hoje são qual minúsculas 'cápsulas do tempo' que nos chegam depois de quase meio século e, uma vez abertas, nos emocionam e nos suscitam questões, como as melhores obras de arte sempre têm o poder de fazer.










Mais sobre a obra de Vivian Maier no site da revista Obvious e no blog criado para a divulgação das suas fotos pelo pesquisador que as descobriu.

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Meses depois deste post, me deparo com outra reportagem sobre a fotógrafa. Desta vez, o tema são os auto retratos que ela fez, ao longo de diversas épocas e em várias situações. Inseri este exemplo aí da cima e não resisti em acrescentar a reportagem aqui no blog. Se tiver interesse, venha aqui

21.11.12

MMA emocional

Não entendo nada de lutas. Aliás, acho uma maneira absolutamente horrorosa de passar o tempo ficar olhando dois sujeitos se engalfinhando na tela da TV, como parece ser do gosto de tanta gente nestes últimos tempos. Daí o meu espanto, quando, conversando com um amigo dia desses, ele me disse: "Na verdade, o grande segredo dessas lutas é saber apanhar. Vence o combate quem permanece mais 'inteiro' até o final, e aí consegue se sobrepor ao adversário. É uma espécie de inteligência".
Na hora não dei muita importância, confesso que o tema me interessa muito pouco. Mas, algum tempo depois, lembrei disso, ao assistir o filme "E agora, para onde vamos?", da diretora Nadine Labaki. A história se passa em uma pequena vila no interior do Líbano, onde convivem, em relativa paz, católicos e muçulmanos. O lugarejo é bem isolado e, para assistir televisão, os moradores têm que levar o aparelho (o único da cidade) para o alto de uma montanha, onde a recepção do sinal se dá. Na primeira noite em que o fazem, porém, uma notícia é veiculada: um novo conflito acaba de ser detonado por motivos religiosos no país. As mulheres, com a sua habitual - e às vezes irritante - mania de prestar atenção em várias coisas ao mesmo tempo, são as primeiras a perceber a novidade que está se desenhando na tela: o país está prestes a mergulhar em uma nova contenda, e, em sua esteira, mais mortes desprovidas de sentido, mais viúvas, mães e órfãos se questionando porque estão sem aqueles que amam. Mais perdas. E, cansadas de todo esse panorama que conhecem tão bem, dão um jeito de distrair a atenção de seus maridos e filhos para que estes não notem o que começa a acontecer no resto do país. Pois é, é a tal da sabedoria que só tem quem está cansado de apanhar...
O filme prossegue se equilibrando em cima deste muro, que separa não apenas diferentes religiões, mas também homens e mulheres, os que sabem e os que não sabem do que está se passa no restante do Líbano.
E foi esse aspecto da história que me chamou a atenção: embora não sejam elas as principais protagonistas desta contenda, são as mulheres que mais sofrem. Por uma simples razão: são elas que ficam. Os homens morrem. E elas se tornam jovens viúvas vestidas de preto ou mães idosas que sofrem a ausência dos filhos. 
E ficar, convenhamos, é muito mais difícil que partir. Quem fica, tem que lidar: com a perda, com as questões, com o remorso, com a dor. Tem que lidar com a própria vida que continua. 
E é assim que, cansadas dessa rotina que lhes rouba precocemente maridos e filhos, as mulheres da aldeia se unem, independente de suas partições religiosas, para evitar maiores perdas. 
As idéias que elas lançam mão para atingir seu objetivo são extremamente originais, e através das suas estratégias, se constrói um filme delicado, divertido, denso, triste e comovente. Um filme de dor, mas que a trata com sabedoria e leveza. Acima de tudo, um filme que nos lembra que, para além de todas as diferenças, afinal (e no final), vamos todos para o mesmo lugar.




17.10.12

Pode a arte mais do que a morte?


O contexto: 
Um homem está com o seu tempo de vida contado. A morte o procura, na figura de uma mulher, para lhe entregar uma carta que lhe anuncia seus últimos dias. Vai ao teatro onde este homem, um músico, se apresenta junto a uma orquestra, com a intenção de lhe anunciar que o fim se aproxima: o fio que o liga à vida será cortado.


A descrição: 
"A orquestra calou-se. O violoncelista começa a tocar seu solo como se só para isso tivesse nascido. Não sabe que aquela mulher do camarote guarda na sua recém-estreada malinha de mão uma carta de cor violeta de que ele é destinatário, não o sabe, não poderia sabê-lo, e apesar disso toca como se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo quanto havia calado, os sonhos truncados, os anseios frustrados, a vida, enfim. Os outros músicos olham-no com assombro, o maestro com surpresa e respeito, o público suspira, estremece, o véu de piedade que nublava o olhar agudo da águia é agora uma lágrima. O solo terminou já, a orquestra, como um grande e lento mar, avançou e submergiu suavemente o canto do violoncelo, absorveu-o, ampliou-o como se quisesse conduzi-lo a um lugar onde a música se sublimasse em silêncio, a sombra de uma vibração que fosse percorrendo a pele como a última e inaudível ressonância de um timbale aflorado por uma borboleta."


Este é Saramago, em 'As intermitências da morte', nos descrevendo como a morte se comoveu ante a delicadeza da arte. É tão lindo, tão verdadeiro, tão emocionante, que não me resta mais nada a dizer. Quis apenas registrar aqui...

5.10.12

Coisas que vamos descobrindo pelo caminho

Gustave Caillebotte - Floor Scrapers,  1876

Foi um amigo que me fez perceber. Como várias das nossas características mais arraigadas, essa morava em mim há tempos e eu nunca tinha me dado conta. Um dia, visitando uma exposição em um museu pequenininho encravado no Marais, o Musée Carnavalet (é um museu que conta a história de Paris, e vale muito uma visita, ainda que seja apenas virtual), passando por uma série de telas expostas, comentei sem pensar: 'adoro as cenas feitas pelos impressionistas da Paris desta época, especialmente as de Caillebotte'. E ele, prontamente: 'você é muito engraçada, com essa sua tendência outsider'. 

Eu: Como assim, outsider?
Ele: Ah, você nunca gosta daquele mais conhecido! Já vi isso um monte de vezes: dos diretores da Nouvelle Vague, não é Godard, nem Chabrol ou mesmo Truffaut, o seu preferido é Louis Malle. Na música clássica, não vem com Chopin, Vivaldi ou Beethoven, você gosta de Albinoni. E agora, com os impressionistas... claro que você não ia se contentar com Monet ou Renoir! Tinha que ser algum pintor como Caillebotte!

Fiquei olhando para ele com cara de besta, meio ofendida até, como se ele estivesse me acusando de ser esnobe. Até que me dei conta que... é verdade! Não por alguma tendência aquele esnobismo tão comum daquele tipo 'gosto-daquela-banda-alternativa-da-última-garagem-de-Seattle-à-esquerda. Olha- só-como-eu-sou-informado-e-moderno!'. Não, nada a ver com isso, mas sim com uma outra característica minha: gosto de ir além daquilo que já está absolutamente estabelecido. 
Então, para mim é assim: ninguém nega o prazer que é ver uma tela de Monet, mas nem por isso ele tem que ser o meu pintor preferido deste período. O mesmo vale para outros tantos exemplos. Às vezes é bom a gente se permitir ir um pouco além do que o já estabelecido nos diz que é bom, seja em termos de gosto por arte e por música, seja na experimentação de coisas novas na culinária, nas roupas, nas amizades. 
Há pouco tempo, escolhida para ser 'paraninfa' de uma turma de alunos formandos, no meu discurso, falei justamente sobre isso: a ousadia de experimentar. E a falta que ela pode nos fazer ao longo do tempo. Vejo hoje - e lamento - as pessoas se permitirem muito pouco. Todo mundo quer ir no 'certo', naquilo já garantido: o emprego que vai te fazer ficar rico (e ser bem sucedido, e famoso, e parecer inteligente...); a roupa que vai te fazer ter a aparência melhor, mais magro, mais elegante, mais bonito e poderoso; a festa que vai 'bombar'; a viagem mais chique. E tenta-se muito pouco, experimenta-se menos ainda, as aberturas para o novo são mínimas, encastelados que ficamos nas nossas certezas ou fórmulas que, tarde demais, percebemos que eram apenas isso: fórmulas. Sem garantias, como tudo na vida.
É claro, todo mundo quer ter uma vida confortável e de sucesso, de preferência fazendo aquilo que gosta, sendo reconhecido como competente, ganhando bem e cercado de amigos. Mas não há caminhos que nos assegurem deste resultado. Mesmo quando fazemos tudo certinho, há sempre o imponderável que, com frequência, vem nos atropelar. E, bagunçado o nosso planejamento inicial, se nos apegamos a ele a ponto de não pensarmos - nem nos permitirmos - as alternativas, o risco de ficarmos perdidos é grande.
Resumindo, e voltando ao ponto de onde comecei, não gosto das fórmulas prontas. Detesto aceitar algo simplesmente porque é o já estabelecido, a unanimidade, aquilo que não se ousa questionar. Gosto sim, de Monet e Renoir. Adoro, na verdade. Mas continuo preferindo Caillebotte. Porque ele é bom mesmo, e também porque sinto um prazer todo especial em saber que ele é a minha escolha pessoal, dentre vários pintores excelentes daquele período. Não foi a mídia que me disse que ele tinha qualidade, não foi o senso comum que definiu que ele é bom. Fui eu, e só tem que funcionar para mim.
Pensei bastante sobre isso desde que aquele amigo me fez prestar atenção nessa minha característica. E hoje, reconheço sinais disso em diversas situações. Dessa coisa meio inquieta que me faz sempre perguntar internamente: 'Tá, isso é mesmo muito bom, mas vamos dar uma olhadinha pro lado e ver quais são as outras possibilidades?'
Semana passada, dando continuidade à minha atividade no atelier de joalheria, ia começar uma peça com um topázio super bem lapidado, quando... olhei pro lado. 
No meio de um monte de tranqueira que estava espalhada em cima da bancada, tinha ele lá, jogado: um pedaço de granito. Sem lapidação, sem brilho, sem transparência. Bruto, áspero, opaco. Praticamente uma pedrinha dessas que chamamos de brita. E eu, olhando prá ela, esqueci que o topázio lindo estava ali, pedindo para ser inserido em um anel, sozinho na bancada. 
Peguei a minha 'britinha', virei, coloquei em cima do dedo. Senti a textura, testei a dureza. Coloquei perto de um pedaço de prata polida, vi o contraste. Apaixonei.
Certamente ainda vou fazer alguma coisa com aquele topázio, mas naquele dia, foi esse anel aí embaixo que saiu...



1.10.12

O que você faria?

"O que você faria se só lhe restasse esse dia? Se o mundo fosse acabar, me diga o que você faria?...", canta Paulinho Moska em 'O último dia'. 
A música se desenvolve elencando uma série de possibilidades para ocupar os últimos momentos da vida de alguém. Escolhas que se impõem: ir a um shopping center, manter os compromissos agendados e a vida sob uma aparente normalidade, ou sair pelado na rua, abrir os portões da delegacia, 'chutar o balde' e fazer tudo o que sempre se quis fazer, mas sempre foi reprimido. 
É uma boa pergunta, essa: o que fazer no último dia? Certamente todos nós iremos vivê-lo, poucos sabendo que estas serão as suas derradeiras horas. Caso soubéssemos, o peso de ter que escolher como aproveitá-las possivelmente nos paralisaria - ou, quem sabe, derrubaria.
Nesta última semana tenho pensado em uma outra questão, de alguma maneira semelhante à essa, que poderia resumir em: "O que você faria se ninguém pudesse te ver?" Conheço duas obras de literatura que parecem trabalhar em cima desta hipótese: o 'Ensaio sobre a cegueira', publicado em 1995 e escrito pelo português José Saramago, e 'O homem invisível', livro de 1897, do inglês H. G. Wells. 
Neste último, um cientista acaba por ser vítima de seus experimentos e se tornar invisível. A partir daí, inicia-se o desenrolar dos acontecimentos. Na tentativa de encontrar um meio de reverter a sua situação, ele vai para uma nova cidade, na qual ninguém o conheça, e chega totalmente envolto em ataduras, como se tivesse sofrido um acidente que o fez ter necessidade de cobrir-se inteiro. O personagem transita pela cidade, sempre, com capa, luvas, óculos, chapéu e ataduras no rosto, na tentativa de manter a ilusão de normalidade. Para além dos componentes de ficção científica característicos da obra de Wells, o mais interessante da história é acompanhar o processo de deterioração moral deste homem. Longe - quando quer - dos olhos reguladores da sociedade, ele sente-se desobrigado de obedecer às normas de convívio social que pautam qualquer comunidade. Daí que, quando lhe apetece, o homem invisível tira todos os elementos que lhe conferem uma forma identificável e, incógnito, sai às ruas, entra nas casas, rouba os moradores, enfim, faz o que quer, segundo as suas próprias regras internas de conduta, que vão se tornando, à medida em que ganha mais confiança, mais e mais elásticas e permissivas.
Se o livro de Wells usa o viés da ficção científica para tratar desse tema, o de Saramago, embora parta de um episódio igualmente inexplicável - a cegueira progressiva da população de uma cidade - adota em seu desenvolvimento um tom de realismo cruel e desesperançado. À medida que a 'epidemia' de cegueira se alastra e as pessoas são colocadas juntas, isoladas em grandes grupos para tentar evitar o contágio, a barbárie cresce. Das regras de higiene às de moral, tudo parece passar por um apagamento. O horror do livro de Saramago é que ele nos revela o quanto a nossa 'normalidade' é construída por elementos impalpáveis, o quanto ela é frágil, o quanto qualquer mínima alteração pode ser suficiente para jogá-la por terra e abrir espaço para a anomia.
Um homem que ninguém vê. Homens que não vêem uns aos outros. As duas histórias não poderiam ser mais diferentes, mas... estranhamente, elas também parecem caminhar para um ponto em comum: a constatação do quanto o olhar do outro nos confere identidade, reconhecimento, limites. Desprovidos deste 'olhar confirmador', parece que nos resta uma espécie de limbo desidentitário, onde tudo que nos parecia tão certo, tão confirmado, de repente se torna tão impalpável.

* Existem versões cinematográficas das duas histórias. Mas, claro, a leitura dos livros é infinitamente mais rica, em especial no caso de Saramago (embora goste muito do filme do Fernando Meirelles). A prosa do escritor português é rica, instigante, sábia, poética. Adoro cinema, mas, mesmo quando já conhecemos o filme, a leitura nos oferece outras perspectivas. São meios diferentes que nos proporcionam prazeres diferentes, e ninguém nunca vai me ouvir dizendo que não vou ler o livro 'porque já assisti ao filme'. :D

16.9.12

O tempo não pára...





... cantava Cazuza no anos 80. Não pára, mesmo. Pelo contrário, à medida em que avançamos em idade, ele nos dá a impressão de passar mais rápido. Mas o tempo é relativo, como já nos disse Einstein. E a percepção de sua passagem... ah, essa é mais ainda! É só compararmos a sensação das horas que dedicamos a um trabalho entediante e essas mesmas horas em uma festa, na praia, ou desempenhando qualquer outra atividade da qual realmente gostemos (que pode ser, inclusive, o trabalho). Nenhuma dúvida qual delas demora mais a passar!
Fortemente imersos em uma atividade da qual gostamos muito, as horas escorrem e não nos damos conta.
Tenho a sorte de ter trabalhado a vida inteira com coisas que gosto muito: primeiro o escritório de arquitetura, depois as aulas de projeto e, posteriormente, de história da arte. No meio disso, enfrentei as duas maratonas do mestrado e do doutorado, mas sempre escolhi temas de trabalho que me deram muito prazer (e um eventual desespero mais do que normal em alguns momentos). Nunca tive que enfrentar aquela sensação de desânimo ao pensar que tinha que trabalhar no dia seguinte (embora os domingos à noite sejam universalmente o momento no qual essa sensação apareça para todos, inclusive para mim, especialmente quando tenho que estar em sala de aula às sete da segunda feira...). 
Mas, nos últimos tempos, tenho desenvolvido uma atividade que realmente balança a minha percepção do correr das horas. Falei dela aqui: o desenho e a execução de peças de joalheria. Dai, nos dias que posso dedicar a isso, é assim: acordo cedo, tomo café, subo para o atelier (que fica no segundo andar da minha casa). Ligo as luzes, uma música, abro a janela prá minha cadela ficar me vendo e não se sentir sozinha, sento na bancada. De repente, sem que eu tenha me dado conta... são duas horas da tarde e eu nem lembrei de almoçar (e nem de dar comida prá Frida, minha rottweiler, embora ela tenha me olhado várias vezes com aquela carinha de carente que só os cachorros sabem fazer...). 
Minhas mãos ficam destruídas: unhas quebradas, dedos lixados, queimados ou cortados, cheios de calos e ásperos, e eu... absolutamente contente! 
Vários dos amigos que sabem do que tenho feito me pediram para ver algumas peças que resultam desse processo. E hoje, como fiquei particularmente contente com o término de uma das peças - um anel em prata com uma granada - resolvi tirar umas fotos e postar aqui. 
Então, para aqueles que de vez em quando me perguntam com é o processo de trabalho, é assim: 

Você funde a prata 




Coloca na rilheira, que é onde se faz o lingote de metal com o qual se vai trabalhar, lamina na forma adequada à peça que vai realizar, e...

corta, lima, lixa, solda...




e voilà!... começam a aparecer os resultados do trabalho!

Anel em prata com quartzo rutilado 


Anel feito totalmente usando a técnica da forja, ou seja, martelando a prata até que ela assuma diferentes espessuras, de acordo com o desenho desejado.

Fiz, logo no início, alguns anéis que cobrem dois dedos da mão,  como este acima, mais tradicional, e o que está abaixo, que nada mais é que uma mola dando a volta no dedo anular e se 'esticando' por cima do dedo médio.
Depois que usei os dois por algum tempo sem acidentes, ou seja, sem que os dedos prendessem em nada, sem me arranhar ou puxar meu cabelo, considerei as peças terminadas. :)



Esse anel foi criado a partir de uma questão: como fazer um anel que ficasse exatamente no meio da mão?
A resposta, óbvia agora, mas nada simples de encontrar: descentralizando o aro, claro!


Me agrada a idéia de trabalhar de uma maneira 'limpa', ou seja, usando o mínimo possível de soldas e engastes na fixação das pedras.
 Esse anel acima é feito com a pedra presa apenas por rebites, ela permanece totalmente solta, e faz um barulhinho bonitinho quando mexo a mão.

O anel de baixo tem uma granada fixada apenas pela pressão do metal, sem soldas, engastes ou caixinhas prendendo-a. A pedra fica mais livre, com a luz podendo atravessa-la de diversos ângulos.



1.9.12

Aqueles gestos...

Esta semana, compartilhei no Facebook uma coletânea de registros de ações espontâneas que, em momentos diferentes e por razões das mais diversas, deixaram vir à tona o lado melhor dos sujeitos daqueles atos. Do rapaz que pulou em um mar agitado para resgatar o cachorro de uma turista em Melborne, passando por uma lavanderia que oferece a limpeza gratuita da roupa de desempregados que estivessem precisando disto para ir à uma entrevista de trabalho, até um grupo de cristãos que compareceu a uma Marcha do Orgulho Gay com cartazes nos quais se desculpavam pela intransigência da igreja católica em relação ao homossexualismo...  - e o abraço emocionado que um dos integrantes da marcha ofereceu a um dos homens cristãos -, ali se reuniam gestos totalmente diferentes, totalmente emocionantes e totalmente generosos. 
Fiquei pensando nisso e em como as pessoas, nos comentários da postagem, diziam o quanto haviam se emocionado ao ver as fotos. Eu mesma fiquei com lágrimas nos olhos ao ver algumas das cenas (embora ficar com os olhos úmidos, para mim, não seja exatamente algo raro). E me dei conta de quantos gestos como esses nos escapam, no dia a dia, simplesmente porque não foram registrados, porque ninguém falou deles, porque se perderam no tempo voraz que nos arrasta em um turbilhão de 'obrigações', 'necessidades' que criamos ou 'prazeres' que 'precisamos' ter. As ações negativas geralmente tomam uma proporção muito maior do que as que revelam algo de bom no mundo.
Passei o dia pensando nisso, e à noite, saí com amigos e fui a um recital de poesia. Não sou exatamente uma pessoa que aprecia a leitura de poesia. Claro, sei reconhecer a grandeza de alguns textos poéticos, mas confesso que a minha sensibilidade se vê muito mais instigada pela linha direta tomada pela prosa. Há exceções, porém. Ontem, ao ouvir uma amiga falar para o público presente um texto de sua autoria, percebi a sua emoção aflorando e lhe travando a voz. Já estava comovida com o texto, fiquei mais ainda com a visão daquela coragem rara: se expor, se desnudar, traduzir o intraduzível em palavras, em um palco, perante uma platéia cuja receptividade é sempre uma incógnita. 
O momento passou, ela terminou lindamente a poesia e foi merecidamente aplaudida. Mais tarde, já em uma mesa de bar, estávamos conversando sobre isso: em como a emoção pode te 'pegar' nos momentos mais inesperados. E, muitas vezes, inadequados. E, justamente ela, me dizia: 'eu tenho uma enorme dificuldade em chorar, mas quando sai, é incontrolável'. 
Não estávamos falando desse choro que vem quando assistimos a um filme que nos comove ou quando vemos uma reportagem sobre algo que nos sensibiliza. Falávamos daquele tipo de choro que vem como cachoeira, rompendo todas as barreiras da educação e do bom senso, e nos atropela sem que tenhamos qualquer tipo de controle. Catarse.
Quando temos sorte, esses momentos acontecem elegantemente em privado, só nós e a nossa dor. Dor, essa com D maiúsculo, tem sempre o seu 'quê' de vergonha, de algo que deve permanecer oculto, longe de olhares estranhos - ou, às vezes, mesmo longe dos olhares familiares. Mas (ah, vida irônica e cruel!...), às vezes essas ocasiões aparecem em momentos absolutamente inadequados: dentro de um ônibus cercados de rostos estranhos, no meio de uma conversa aparentemente trivial com alguém... até na leitura pública de um poema. 
A noite se estendeu agradavelmente até a madrugada fria, voltamos todos para nossas casas, mas o tema não me abandonou: acordei ainda tocada pelo poema e pensando nas histórias compartilhadas em torno da mesa de bar. Lembrando também, além disso tudo, daqueles gestos de generosidade alheia que, em sua maioria, permanecem anonimamente recolhidos apenas às vivências de quem os experimentou. Foi inevitável, a partir da junção dos dois temas, me lembrar das minhas próprias vivências, de uma em especial, que junta exatamente essas duas situações: o choro incontrolável e a beleza do gesto generoso de um estranho.
Paris, 2010, quase no final do período em que morei lá. Cansada, depois de quase um ano me sentindo estrangeira e sozinha, longe dos amigos, longe da minha família e atravessando uma fase difícil. A capital francesa tem esse bônus: oferece lugares lindos onde se pode sofrer em paz. E lá estava eu, no Parc de la Villette, caminhado, pensando na vida, sentindo frio e desamparo. Sentei um um dos bancos lindos (mas gelados!) de metal que estão polvilhados por todo o parque, fiquei um pouquinho quieta, só com minhas lembranças e pensamentos e... veio. Incontrolável, aquele tipo de choro que, quando acaba, parece que você levou uma surra. Não tem nada de elegante, não tem nada de discreto, não tem nada de contido: está mais para (desculpem, mas é a melhor comparação em que consigo pensar) um acesso incontrolável de vômito: violento e vergonhoso.
Quando comecei a me acalmar, e começava a me congratular por ser inverno, o parque estar bem vazio e ninguém ter me visto, percebo que tem alguém parado, em pé, ao meu lado. Ainda soluçando, levanto o rosto e vejo: um policial. Sério e uniformizado. A primeira coisa que meu humor negro me fez pensar foi: 'putz, ele vai me dizer que é proibido chorar em público nos parques de Paris'. Olhei para o rapaz e ele me perguntou: 'você está bem?'. 
Ah!.... O que responder nessas horas? Dizer que sim, que está tudo bem? Depois do moço ter me visto ter algo parecido com um 'siricutico' no meio do parque? Resolvi ser 'meio' sincera: 'não estou ainda, mas vou melhorar, não se preocupe'.
Achei que o rapaz fosse se afastar polidamente, mas ele permaneceu ali, me olhando por um tempo calado, até que disse algo que me surpreendeu absolutamente. Com uma delicadeza rara, ainda de pé, ele falou baixinho: 'Se você quiser conversar, eu posso ficar aqui. Posso te ouvir.'
Escutar essa oferta tão generosa de um completo estranho, de uma pessoa que estava ali para manter a ordem e não deixar que jogassem lixo no chão ou cometessem atos de vandalismo no parque, claro, me fez chorar mais ainda. Finalmente, silenciosamente, ele se sentou. Segurou pacientemente o meu ombro enquanto eu voltava a soluçar, sem dizer uma palavra. A presença dele me disse tudo o que eu precisava: até um estranho pode se importar com você, às vezes. E, às vezes, isso é suficiente. Não é o que você precisava realmente, mas ajuda.
Aos poucos consegui parar novamente de chorar, garanti a ele que ia ficar tudo bem, levantei, agradeci, me despedi e fui caminhado em direção ao metrô para retornar para casa. Nunca soube nem o nome dele, mas o seu gesto permaneceu comigo até hoje e, ainda hoje, é suficiente me lembrar dele para que me brotem lágrimas nos olhos. 
Fiquei pensando neste como um daqueles gestos de generosidade que acontecem anonimamente, sem registro, sem nada que lhes marque a não ser a memória. E descrevê-lo aqui foi a minha maneira de eternizá-lo e agradecer aquele rapaz que um dia chegou perto de alguém que nunca tinha visto antes e ofereceu os seus ouvidos e o seu conforto. Mais que isso, ofereceu a sua humanidade.

2.8.12

Aquilo que é inominável em cada um

Há algum tempo atrás, fui em uma reunião de uma ONG conhecida no Brasil como NA, narcóticos anônimos. Não faço parte do grupo, as 'drogas' das quais sou dependente são daquele tipo cujos efeitos devastam apenas o interior, e estes efeitos nem sempre são percebidos por quem nos cerca. Dentre as mais importantes, estão livros, filmes, arte e afetos -, com uma ênfase especial nestes últimos. Preservando o 'anônimos' do título, não vou explicar por quais caminhos cheguei até essa reunião, mas o fato é que permaneci lá, em um domingo-final-de-tarde-depois-da-praia, escutando depoimentos de pessoas que passaram por experiências muito peculiares de vida.
Esse episódio tem mais de um ano, mas até hoje lembro com clareza da fala de uma das pessoas presentes que me impressionou bastante. Não tinha nada de excepcional o depoimento, mas me tocou exatamente pela simplicidade das conclusões: um rapaz bonito, tatuado, jeitão de surfista, contava sobre o momento em que entendeu que precisava mudar os rumos que a sua vida ia tomando. Dizia ele: 'ah, eu antes achava que consumir droga não me prejudicava, vivia cercado de gente, cheio de namoradas, nas baladas mais legais, parecia que aquilo só acrescentava diversão. Mas aí, em um certo momento, eu entendi que não era bem assim, que a droga me roubava coisas também. Eu passei a perceber uma série de coisas e situações que não percebia antes. E, uma vez que eu passei a saber, não podia mais fingir que não sabia, né?'. A fala dele prosseguiu, narrando a sequência de atitudes que se seguiu a essa descoberta, o seu processo de recuperação e a retomada de coisas, valores e relacionamentos que haviam sido neglicenciados durante tanto tempo. Mas a clareza daquela conclusão continuou rodando na minha cabeça muito tempo depois que deixei a sala da reunião: 'se eu sei, não posso continuar fingindo que não sei'.
De vez em quando penso nessa frase, e ela passou, sem que eu percebesse com clareza, a fazer parte do meu 'repertório interno', aquele que todos carregamos e ao qual recorremos em alguns momentos, para explicar a nós mesmos determinadas situações, decisões ou atitudes nossas ou das pessoas que nos cercam. E fico pensando também em quanta gente consegue viver driblando diariamente essa verdade tão simples: como fingir que não sei algo que já faz parte de mim? 
Poderíamos pensar nessa questão através de várias das possibilidades que ela apresenta: não posso fingir - para mim mesmo - que não li um livro que já li, que não vi um filme que já vi, que não conheço alguém que conheço, e, especialmente, que não vivi uma experiência que vivi. É como uma cortina: uma vez que ela abriu  - mesmo que tenha sido rapidamente -, e eu vi o que está atrás dela, não dá prá ignorar.
Às vezes dá vontade, claro. Conseguir isso, essa espécie de 'amnésia', tornaria a vida mais fácil. Mas simplesmente não dá. A gente pode até achar que consegue, que damos uma disfarçada, olhamos pro lado, cantamos uma musiquinha e voilà!, aquilo que eu sabia... sumiu! Mas, que nem Freddy Krueger nos nossos pesadelos, as verdades têm o chatíssimo hábito de retornar quando menos se espera, e quererem ser reconhecidas como tal: verdades. E elas voltam, às vezes em sonhos, às vezes em atos falhos, às vezes sob a forma de 'exorcismos' feitos através da produção artística (uma das maneiras mais utilizadas para driblar coisas que não nos convém, na verdade).
Essas reflexões - meio sem propósito, sou a primeira a reconhecer - vêm através da retomada da leitura de Saramago, um autor que gosto mais a cada vez que leio. Parafraseando o que os argentinos dizem a respeito de Gardel (que, embora tenha morrido há tantos anos, 'canta cada vez melhor'), para mim o escritor português, embora morto desde 2010, escreve cada vez melhor. A sua escrita é como uma cebola: vamos descobrindo as camadas, uma após a outra. E algumas nos fazem chorar.
O que dizer de frases como: "Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos"....? Dentro dessa sentença aparentemente simples cabem tantas questões, pensamentos, esperanças, dúvidas e desespero que podem conter uma vida. E como chegar perto de dar nome ao que somos, se aquilo que é inominável também nos compõe, intrinsecamente ao que conhecemos?...
Foi exatamente refletindo sobre esta frase e seus desdobramentos que comecei a escrever esse texto. Isso que não tem nome - e que é o que somos, segundo o escritor - se torna mais completo - e mais desafiador, claro - quanto mais conseguimos nos forçar a não fechar os olhos para aquilo que sabemos a nosso respeito e a respeito do que nos cerca. Mas,... assim como a maior parte das coisas que valem a pena na vida... como é difícil!...


20.7.12

Dia do amigo?


Sou rabugenta. Muito. Implico com coisas que a maioria das pessoas acha totalmente naturais. Acho chatinhas, por exemplo, essas datas inventadas: dia dos namorados, dia da secretária, dia de... (coloque aqui uma profissão qualquer. E, antes que alguém pergunte, não vou falar no dia das mães e dos pais porque tenho amor à minha pele, né?...).
Sempre achei algo forçadas essas obrigatoriedades de presentes, jantares, telefonemas... Essas são atenções que – eu penso – deveriam ser espontâneas, sem datas marcadas para acontecer. Dessas tais datas pré-estabelecidas temos como resultados frequentes os restaurantes lotados, as floriculturas vazias de estoque, presentes comprados de última hora e uma mistura de atos que podem ser, verdadeiramente, movidos pelos afetos e outros que dizem mais de uma sensação de ‘obrigação’ ditada pela data.
De uns tempos para cá inventaram esse tal ‘dia do amigo’. Esse ano tive a surpresa de saber que existe o ‘dia do homem’... (e nem tem graça entrar em considerações a respeito do absurdo dessa definição). Fico pensando o que mais vamos criar para institucionalizar ‘categorias’ que existem naturalmente, e que, na maioria das vezes, não têm tantos motivos assim para comemorar. Enfim, todo mundo entendeu o ‘espírito da coisa’ da minha implicância. Como eu afirmei lá no início, sou rabugenta. Muito.
Dizer que o ‘dia do amigo’ deve ser todo dia é nada mais que um clichê, embora verdadeiro. Afinal, se estamos na vida das pessoas, compartilhando os mais diversos momentos, não há dias estabelecidos para que este afeto seja exercido. Ou exigido. Outro dia, conversando sobre isso, parei para tentar definir: afinal, o que pode ser considerado como um ‘amigo’? Vivemos cercados de todos os tipos de pessoas, com as quais mantemos relações das mais diversas: coleguismo, parceria, afinidade. Em geral, gostamos de quem nos cerca, mas... o que faz com que uma pessoa passe a fazer parte deste círculo restrito ao qual denominamos ‘amigos’? Cheguei a uma definição besta, mas que funcionou para mim: amigo, nas minhas ‘categorizações’ internas, é aquela pessoa para a qual eu posso telefonar às três da manhã de um dia qualquer, pedindo ajuda. Por qualquer motivo: tristeza, doença, pneu furado, assalto. Se eu me sentir à vontade para, naquele momento, telefonar, expor a minha fragilidade e pedir ajuda, sem vergonha ou constrangimentos, aquela pessoa é minha amiga. Ao menos na minha concepção.
E, hoje, no tal do ‘dia do amigo’, confesso que é sim, bonitinho, receber telefonemas de pessoas que gostam da gente e desejam um dia feliz. Especialmente quando sabemos que essas pessoas nos desejam dias felizes todos os dias. E daí, após colocar toda a minha rabugice para funcionar em relação ao tal dia, retomei a leitura de um livro que tem me feito companhia há alguns dias: ‘Swann’, de Carol Shields. E, lá, como se escrito para mim e para esse dia, encontrei a seguinte passagem:

“É verdade que Cruzzi está numa idade em que conta mais amigos entre os mortos do que entre os vivos, mas ainda é um homem que vive cercado de amigos. Cada vez mais, para deixar claro, ele procura a solidão, ou está irritadiço, ou sentindo-se cansado, estranhamente inquieto; mas não é capaz sequer de imaginar uma vida na qual a amizade não ocupe enorme espaço. Ele pouco espera de alguém que leva uma vida sem amigos, e fica a imaginar como tais infelizes arrumam força para viver”.

Pois é, como sempre, na maioria das vezes a arte nos dá as respostas. Das formas mais inesperadas.



4.7.12

Vamos falar sobre a morte?

Pensamos pouco nela. Aliás, na maior parte do tempo, fugimos do assunto, fingindo que não irá acontecer conosco e nem com ninguém que conhecemos. Atravessamos a vida - e a cidade - vendo os seus sinais, mas escolhendo ignorá-los. Seja nas notícias da violência urbana que proliferam na mídia, seja nos acidentes cada vez mais numerosos, ela nos rodeia. Signos da sua presença estão espalhados pelas avenidas e praças das metrópoles. De cemitérios a monumentos, estamos cercados pela morte.
Com Lewis Munford, aprendemos que a cidade dos mortos veio antes da cidade dos vivos. Mas, apesar da sua inevitabilidade e importância (ou talvez, por causa dela), a cultura ocidental não tem por hábito incorporar a morte como parte da vida.
Apesar disso, em alguns momentos, ela se impõe: naquele quase acidente que foi evitado por um micro segundo, no assalto do qual escapamos ilesos, na tragédia que vemos nas cenas dos telejornais. E, às vezes, escolhemos olhá-la de frente, voluntariamente. Assim será o evento que acontecerá a partir de amanhã no Museu da República, Rio de Janeiro. Pesquisadores de diversas áreas se reunirão para 'olhar' a morte dos seus mais diversos ângulos, no colóquio "Representações da morte no ambiente urbano".
Eu estarei lá, falando sobre um fenômeno bem contemporâneo: a 'neutralização' crescente que nos acomete em relação à vida e à própria humanidade, na palestra que intitulei "Em vez de rosto uma foto de um gol": algumas considerações sobre a vida, a morte e a humanidade.


Ah, para quem acompanha o blog e ficou com a impressão de que já viu essa foto antes, parabéns pela memória! Ela estava neste post aqui.

2.7.12

O que nos resta

Em dezembro de 2010, fui visitar um antigo campo de concentração nazista, perto de Berlim, chamado Sachsenhausen. Era inverno, fazia muito frio e ventava horrivelmente, e o guia que acompanhou o grupo em que eu estava era uma pessoa de excepcional sensibilidade. Tudo isso contribuiu para tornar aquela uma experiência forte e inesquecível. O que eu já tinha lido sobre esse período, de Hannah Arendt ('Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal') à Primo Levi ('Se isto é um homem?'), rodava na minha cabeça, junto com as cenas dos lugares visitados: os refeitórios, os dormitórios, o necrotério, a câmara de gás. Depois de um dia inteiro, saímos de lá, todo o grupo que havia se reunido pela manhã, exaustos e circunspectos. A volta para Berlim foi soturna, calada, cada um dentro do trem perdido em seus próprios pensamentos e conjecturas.
Depois de um dia inteiro sem comer nada, sentei para fazer uma refeição em um dos únicos lugares que estava aberto naquele final de tarde: a praça de alimentação de um centro comercial próximo ao meu hotel. Em um restaurante italiano, pedi uma massa. De repente, olhei em volta. Era um domingo, o lugar estava lotado, crianças corriam, casais passeavam de mãos dadas, famílias faziam o seu almoço tardio ou vistoriavam as vitrines das diversas lanchonetes ao redor. Tudo estava barulhento e movimentado, pleno de normalidade, mas, de repente... de repente... era como se nada daquilo fosse normal, nada daquilo fizesse sentido, nada daquilo fosse real. Aquelas pessoas todas, comendo, passeando, rindo, e... por trás dessa aparente normalidade, todo o peso daquele passado, daquela história negra e densa, como um esgoto correndo por baixo de um rio de águas limpas. Não estou me referindo aos alemães, claro. Acredito que a questão é muito mais abrangente do que pura e simplesmente responsabilizar uma nação. A responsabilidade é da humanidade. A mesma humanidade que estava ali, matando a fome ou a gula naquele lugar repleto de comida, foi capaz de matar de fome, maus tratos, frio, e de todos os tipos de torturas imagináveis, outra parte de si mesma. Outra parte da humanidade. 
A enormidade daquilo me atingiu de uma maneira tão completa que a fome foi embora, mesmo depois de um dia inteiro em jejum. Fui para um dos banheiros do local e chorei compulsivamente durante alguns minutos. Não sabia bem porque estava chorando. Chorava por todas aquelas pessoas mortas, escravizadas, violentadas, torturadas. Chorava pelas pessoas da praça de alimentação, aparentemente alheias à dor. Chorava por mim. 
Até hoje sou capaz de me lembrar com clareza a sensação de ligação que me atropelou: ligação com os que foram vítimas, com os que foram algozes, com os 'inocentes'que nada fizeram para deter a barbárie. Sensação de pertencimento à humanidade, ao mesmo tempo ao seu lado bom e ao seu lado ruim.
Este mês chegou, com atraso, ao Brasil, um filme alemão de 2007, 'An ende kommen touristen' (À espera de turistas), do diretor Robert Thalheim. O tema me interessava, fui logo no dia da pré-estréia: um jovem alemão vai trabalhar no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, que hoje está transformado em museu. Lá, conhece Krzeminski, um senhor idoso, antigo prisioneiro do campo, que permanece morando ali e faz depoimentos sobre a sua experiência para os visitantes. Desse encontro entre os dois personagens, e sobretudo, entre gerações compostas de valores e realidades tão distantes, se constrói a narrativa.
Esqueçam-se das cenas chocantes de prisioneiros nos campos de concentração: o filme de Thalheim passa ao largo desse estratagema fácil. Pelo contrário, a narrativa é aparentemente 'leve'. Digo aparentemente, porque, na verdade, o fato de escapar das imagens previsíveis da barbárie dá ao filme uma abertura que permite deixar de lado as respostas prontas para que possam aflorar as perguntas. E estas, claro, não são confortáveis.
Ficamos a nos perguntar sobre a legitimidade de transformar um local no qual foram assassinadas um milhão de pessoas em um ponto turístico que recebe essa quantidade de visitantes por ano. Ficamos pensando sobre as questões que ficaram para trás na história, mas que ainda hoje parecem cobrar uma pesada dívida dos jovens alemães. Ficamos curiosos sobre como deve ser, para alguém que padeceu naquele local (e que, teoricamente, deveria querer escapar para algum lugar muito distante), permanecer ali e ver a transformação - do local e a sua própria - em 'entretenimento'; e em como isso passa também a constituir a sua identidade. E, sobretudo, ficamos perturbados com a ausência de sentido histórico que parece assolar as gerações 'neutralizadas' pela mídia para a imensidão dos acontecimentos que tiveram lugar em alguns momentos no tempo. Em uma das passagens do filme, ao final de uma das suas palestras, um estudante pede a Krzeminski que mostre a tatuagem que lhe foi feita no campo. Ele levanta a manga da camisa, o estudante olha a tatuagem e parece decepcionado. 'Ela está apagada', diz para o velho. Ao que este retruca, amargo: 'É, eu não quis retocar'.
Saí do filme, e, conversando sobre ele, escutei da pessoa que foi comigo: 'ah, para mim, o mais interessante foi a opção do antigo prisioneiro em manter a sua dignidade'. Fiquei pensando sobre isso, e, finalmente, cheguei à conclusão de que manter a dignidade nem sempre é uma opção. Às vezes é só o que nos resta face a algumas situações.



20.6.12

Criatividade a ferro e fogo

Sou formada em arquitetura. Embora hoje em dia não exerça a profissão em seu sentido estrito, ou seja, não trabalho mais com o desenvolvimento de projetos arquitetônicos, há um aspecto do ofício de arquiteto que sempre me incomodou: o autor nunca tem o controle do resultado final do seu projeto. Entre o que está na sua mente e se expressa em seus desenhos, e a obra final, concreta, há um sem número de variáveis: as modificações ao longo do processo em função dos projetos complementares (estruturais, hidrosanitários, etc...), as mudanças feitas de última hora pelo cliente - muitas vezes em função de limitações no orçamento -, os erros que podem acontecer durante a obra e que têm que ser resolvidos, acarretando, muitas vezes, adaptações que não constavam do projeto original... enfim, são muitas as situações nas quais um projeto pode adquirir uma forma absolutamente diversa daquela sob a qual foi concebido. Isso é inerente à profissão, claro. Uma obra de arquitetura é algo complexo que lida com muitas variáveis, objetivas e subjetivas. Isso, às vezes, é responsável por frustrações nos autores de um projeto.
Como vim ao mundo com o sério 'defeito de fabricação' de ser controladora ao extremo, esse 'gap' entre o que eu crio e o que efetivamente é jogado no mundo sempre foi uma questão importante para mim.
Há alguns anos atrás, comecei a migrar da área de criação de projetos arquitetônicos em direção a outras formas de trabalhar com a arquitetura: fiz um mestrado já focado na área teórica, me tornei professora, fui me interessando cada vez mais por outras possibilidades, outros campos de conhecimento, outros pontos de vista. Arquitetura não é algo que se exerce 'nas horas vagas', e lá pelas tantas, entendi que não conseguiria manter as duas atividades: a teórica e a prática. Assim, acabei fazendo uma opção. Nunca me considerei 'menos' arquiteta por causa disso: fiz o que fiz e tive a trajetória que tive exatamente por causa da minha formação como arquiteta, ainda que tenha, aos poucos, deixado de lado o aspecto mais visível da profissão.
Ainda assim, sempre me fez falta exercitar a criatividade em coisas concretas. Embora criatividade seja algo que atravesse a vida e possa se expressar de diversas maneiras - em uma aula, em um artigo, em uma abordagem de qualquer assunto -, o ato de 'produzir' algo - muitas vezes tirado do nada, apenas da própria mente - sempre me fascinou. Seja um projeto arquitetônico, seja um simples objeto. 
Há alguns anos, enquanto fazia mestrado em São Paulo, descobri um novo campo onde exercitar essa criatividade: a joalheira. Não o simples design das jóias, mas todo o processo: da concepção ao desenho, chegando até a execução do objeto. Na época, fiz, em paralelo às disciplinas do mestrado em arquitetura na FAU/USP, um curso de técnicas de execução de joalheira, e... adorei!
Durante um ano, mergulhei no mundo da prata, dando forma ao metal através da laminação, da solda, da forja, das cravações de pedras. Ia para as aulas com um ânimo que às vezes me fazia emendar a tarde com a noite e sair do atelier na Vila Madalena depois de uma jornada de oito horas contínuas junto com o último aluno. As mãos viviam cheias de calos, machucadas e queimadas. Manicure? Esquece, dinheiro jogado fora... E eu continuava adorando. Meu professor era um designer excelente, exigente e perfeccionista, que me incutiu um grau de exigência com o trabalho e com o desenho que me agradaram enormemente.
O tempo passou, as disciplinas do mestrado acabaram e eu mudei de São Paulo, interrompendo as aulas, que me fizeram uma gigantesca falta. Voltei para Vitória e durante algum tempo ainda continuei praticando, em um atelier que montei na minha casa. Adorava quando saía com uma peça feita por mim e as pessoas reparavam, elogiavam, perguntavam onde eu tinha adquirido. Mas a vida se impõe. As aulas começaram a exigir tempo de preparação, outras atividades passaram a tomar mais espaço e o 'bichinho' inquieto que mora dentro de mim começou a sussurrar no meu ouvido: 'como assim, vai ficar aí parada? e o doutorado?'
A joalheria acabou ficando para trás. De vez em quando olhava para os meus equipamentos lá, parados, juntando poeira, e sentia até um apertinho  no coração. Mas... vida que segue! Não posso reclamar, neste período fiz muitas coisas bacanas: reformei uma casa, publiquei um livro, entrei no almejado doutorado, fui morar no Rio, depois em Paris... e o laminador, o maçarico, a politriz ficaram lá, paradinhos, tristinhos, esperando o dia em que eu ia olhar para eles de novo.
Depois do doutorado já nem estava mais lembrando que um dia eu, como Vulcano, o deus grego que manipulava os metais, conseguia pegar um pedaço maciço de prata e martelar, cortar e soldar até dali tirar um anel, um bracelete, uma gargantilha. 
Mas aí... vem aquela sensação do '...e agora?...' que sempre se apodera de quem termina uma tarefa à qual dedicou muito tempo e energia. A gente volta para a vida 'normal', mas esse normal, depois que conseguimos descansar e nos recuperarmos de toda aquela energia dispendida, parece, simplesmente... pouco.
Em um desses dias - nos quais ter como tarefa apenas o emprego se assemelha a férias ('como? nada prá ler, nada prá pesquisar, nenhum artigo prá escrever?') - olhei pros meus velhos equipamentos e eles estavam lá: quase enferrujando por falta de uso. No mesmo dia, me deu um 'clic' e não sosseguei até achar um atelier onde pudesse retomar as aulas abandonadas há tantos anos atrás.
No primeiro dia em que retornei às aulas de joalheria e que fui fundir a liga de metais para fazer a prata, fui vendo aquela mistura de metais ficando quase branca, depois rosada, até se liquefazer prateada sob a chama do meu maçarico, e entendi: eu realmente adoro isso!
Mal posso esperar para ter meus calos de volta!...

27.5.12

Uma casa aonde ninguém vai



O cantor Lenine tem uma música na qual afirma que "o medo é uma casa aonde ninguém vai". Embora na maior parte das situações eu até concorde com a afirmação, também reconheço que frequentemente somos obrigados a ir até essa 'casa' enfrentar nossos temores, sejam eles quais forem: dos mais concretos - altura, baratas, mar, cachorros... - aos menos específicos e, por isso mesmo, muito mais difíceis de lidar: doença, solidão, violência, rejeição.
Por outro lado, acredito que há uma 'casa' dessas, metafóricas, aonde muito menos gente vai. Esta casa, na minha opinião, é a vergonha.
Enfrentar medos às vezes pode ser mais fácil do que se pensava de início. Pode ser libertador, pode nos tornar mais fortes, pode mesmo ser motivo de piada tempos depois. A vergonha, embora possa parecer, à princípio, muito menos ameaçadora que os nossos medos, pode ser muito mais paralisante. E pode, por vezes, definir de forma muito mais concreta o que nos tornaremos ao longo do tempo.
Escrevo isso à propósito do filme 'Shame', de Steve McQueen (diretor homônimo do ator), no qual se dividem em cena, de forma primorosa, Michael Fassbender e Carey Mulligan. Eles interpretam dois irmãos que trazem, do passado, uma carga pesada, uma herança indesejada e indizível, sendo apenas insinuada ao longo do filme. O que interessa, no entanto, é a maneira como cada um reage a isso e passa a pautar a sua vida e as suas relações afetivo-amorosas. Da apatia de Brandon, que afoga o seu desespero e a sua vergonha na compulsão sexual, à carência extremada de Sissy, sua irmã, dependente profissional de afeto, venha este de onde vier, vemos duas possibilidades inversas de lidar com a mesma questão que assola aos dois: a atração mútua e o incesto que acena perigosamente a cada vez que se encontram.
O filme é tenso, triste, lindo, pesado. Nos compadecemos dos dois personagens, acompanhando o seu desespero, a sua dor, as suas tentativas de afogar a vergonha nas suas compulsões. Em uma das cenas  mais tocantes da narrativa, quando a busca do sexo incessante não basta mais a Brandon, ele provoca uma briga em um bar, para que, estendido no chão, sangrando, moído das pancadas que levou do sujeito que incitou com alusões pornográficas à sua namorada, consiga, por alguns momentos, sentir algo diferente daquela dor interna tão profunda e tão difícil de assimilar. Pode uma dor ser anestesia para outra?, ficamos a nos perguntar.
O tempo inteiro em que assistimos ao filme, permanecemos nas cadeiras como elásticos esticados, prontos para pular ao menor movimento, sabedores que aquela tensão extrema é insustentável. Quando o desfecho chega, porém, não traz alívio. Traz apenas a certeza de que, com algumas coisas, nunca conseguiremos lidar. Em algumas casas, nunca, nunca conseguiremos ir impunemente. E se formos, talvez não consigamos sair.

10.5.12

Quando Wittgenstein encontrou Pina Bausch

O filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein faz parte daquela lista famosa dos teóricos que são muito citados, mas pouco lidos. Escritor de uma única publicação, o 'Tratactus Logico-Philosophicus', de 1922, é considerado um dos pensadores mais importantes do século XX. Apesar disso, muitas das suas frases são utilizadas fora do contexto, desvinculadas do restante do raciocínio que as daria o sentido pleno. Há alguns dias, um amigo alemão me enviou um  vídeo do artista finlandês M. A. Numminem, no qual ele brinca exatamente com uma das frases mais conhecidas - e mais citadas - de Wittgenstein: "What we cannot speak about we must consign to silence".
Isso acabou gerando uma conversa a esse respeito, na qual eu defendia que o 'speak' - falar -, pode ser feito de várias maneiras, não apenas através da linguagem que se vale das palavras. Eu defendi então, o conceito de 'expressar' ao invés de falar, e terminei brincando que faltou um divã na vida do Ludwig...
Quando falei em 'expressar', claro, estava pensando naquela que, para mim, é a mais forte forma de expressão: a arte. Quanto de indizível a arte pode conter? Quanto de emoção, quando de dor, de prazer, de alegria, de desolação?... Quantas palavras seriam necessárias para expressar a melancolia de uma tela de De Chirico, a solidão de uma cena de Hopper, a elegância de um móbile de Calder, ou a ternura de um Chagall? E seriam elas suficientes? O que apreendemos com um simples golpe de vista, o que nos atinge em um nível tão profundo, seria tão forte se traduzido por palavras? Não sei, não tenho a resposta...
Mas hoje, finalmente, assisti ao filme de Wenders, 'Pina'. Ou melhor, vou repetir a frase de maneira correta: hoje, finalmente, assisti ao belíssimo (aqui você faz uma pausa e relê a palavra 'belíssimo' cinco vezes, por favor) filme de Wenders sobre a sua amiga, Pina Bausch. E, logo no início do filme, fui surpreendida com as palavras da própria Pina, que parecia estar me respondendo, ao afirmar: "Há situações que te deixam absolutamente sem palavras. As palavras, também, não podem fazer mais do que apenas evocar as coisas. É aí que vem a dança."
O filme de Wenders parece fazer eco a esse pensamento todo o tempo, já que o diretor move-se ao longo de sua obra com um profundo desprezo pelas diferenças entre as diversas línguas que se sucedem na tela, através dos bailarinos da companhia, oriundos de diferentes nacionalidades: ouvimos inglês, francês, alemão, espanhol, japonês, português e italiano. E o tempo todo, fica claro que o idioma é realmente algo secundário: aquelas pessoas se comunicam através de algo muito mais poderoso: a sua dança! 
E, ao final, é novamente a própria Pina que volta para dizer: 'Dancem, dancem, senão estaremos perdidos...", como se dissesse, 'expressem-se!', 'comuniquem-se!',... da forma que puderem!..
Wittgenstein ficaria orgulhoso.