1.10.12

O que você faria?

"O que você faria se só lhe restasse esse dia? Se o mundo fosse acabar, me diga o que você faria?...", canta Paulinho Moska em 'O último dia'. 
A música se desenvolve elencando uma série de possibilidades para ocupar os últimos momentos da vida de alguém. Escolhas que se impõem: ir a um shopping center, manter os compromissos agendados e a vida sob uma aparente normalidade, ou sair pelado na rua, abrir os portões da delegacia, 'chutar o balde' e fazer tudo o que sempre se quis fazer, mas sempre foi reprimido. 
É uma boa pergunta, essa: o que fazer no último dia? Certamente todos nós iremos vivê-lo, poucos sabendo que estas serão as suas derradeiras horas. Caso soubéssemos, o peso de ter que escolher como aproveitá-las possivelmente nos paralisaria - ou, quem sabe, derrubaria.
Nesta última semana tenho pensado em uma outra questão, de alguma maneira semelhante à essa, que poderia resumir em: "O que você faria se ninguém pudesse te ver?" Conheço duas obras de literatura que parecem trabalhar em cima desta hipótese: o 'Ensaio sobre a cegueira', publicado em 1995 e escrito pelo português José Saramago, e 'O homem invisível', livro de 1897, do inglês H. G. Wells. 
Neste último, um cientista acaba por ser vítima de seus experimentos e se tornar invisível. A partir daí, inicia-se o desenrolar dos acontecimentos. Na tentativa de encontrar um meio de reverter a sua situação, ele vai para uma nova cidade, na qual ninguém o conheça, e chega totalmente envolto em ataduras, como se tivesse sofrido um acidente que o fez ter necessidade de cobrir-se inteiro. O personagem transita pela cidade, sempre, com capa, luvas, óculos, chapéu e ataduras no rosto, na tentativa de manter a ilusão de normalidade. Para além dos componentes de ficção científica característicos da obra de Wells, o mais interessante da história é acompanhar o processo de deterioração moral deste homem. Longe - quando quer - dos olhos reguladores da sociedade, ele sente-se desobrigado de obedecer às normas de convívio social que pautam qualquer comunidade. Daí que, quando lhe apetece, o homem invisível tira todos os elementos que lhe conferem uma forma identificável e, incógnito, sai às ruas, entra nas casas, rouba os moradores, enfim, faz o que quer, segundo as suas próprias regras internas de conduta, que vão se tornando, à medida em que ganha mais confiança, mais e mais elásticas e permissivas.
Se o livro de Wells usa o viés da ficção científica para tratar desse tema, o de Saramago, embora parta de um episódio igualmente inexplicável - a cegueira progressiva da população de uma cidade - adota em seu desenvolvimento um tom de realismo cruel e desesperançado. À medida que a 'epidemia' de cegueira se alastra e as pessoas são colocadas juntas, isoladas em grandes grupos para tentar evitar o contágio, a barbárie cresce. Das regras de higiene às de moral, tudo parece passar por um apagamento. O horror do livro de Saramago é que ele nos revela o quanto a nossa 'normalidade' é construída por elementos impalpáveis, o quanto ela é frágil, o quanto qualquer mínima alteração pode ser suficiente para jogá-la por terra e abrir espaço para a anomia.
Um homem que ninguém vê. Homens que não vêem uns aos outros. As duas histórias não poderiam ser mais diferentes, mas... estranhamente, elas também parecem caminhar para um ponto em comum: a constatação do quanto o olhar do outro nos confere identidade, reconhecimento, limites. Desprovidos deste 'olhar confirmador', parece que nos resta uma espécie de limbo desidentitário, onde tudo que nos parecia tão certo, tão confirmado, de repente se torna tão impalpável.

* Existem versões cinematográficas das duas histórias. Mas, claro, a leitura dos livros é infinitamente mais rica, em especial no caso de Saramago (embora goste muito do filme do Fernando Meirelles). A prosa do escritor português é rica, instigante, sábia, poética. Adoro cinema, mas, mesmo quando já conhecemos o filme, a leitura nos oferece outras perspectivas. São meios diferentes que nos proporcionam prazeres diferentes, e ninguém nunca vai me ouvir dizendo que não vou ler o livro 'porque já assisti ao filme'. :D

Nenhum comentário:

Postar um comentário