16.9.12

O tempo não pára...





... cantava Cazuza no anos 80. Não pára, mesmo. Pelo contrário, à medida em que avançamos em idade, ele nos dá a impressão de passar mais rápido. Mas o tempo é relativo, como já nos disse Einstein. E a percepção de sua passagem... ah, essa é mais ainda! É só compararmos a sensação das horas que dedicamos a um trabalho entediante e essas mesmas horas em uma festa, na praia, ou desempenhando qualquer outra atividade da qual realmente gostemos (que pode ser, inclusive, o trabalho). Nenhuma dúvida qual delas demora mais a passar!
Fortemente imersos em uma atividade da qual gostamos muito, as horas escorrem e não nos damos conta.
Tenho a sorte de ter trabalhado a vida inteira com coisas que gosto muito: primeiro o escritório de arquitetura, depois as aulas de projeto e, posteriormente, de história da arte. No meio disso, enfrentei as duas maratonas do mestrado e do doutorado, mas sempre escolhi temas de trabalho que me deram muito prazer (e um eventual desespero mais do que normal em alguns momentos). Nunca tive que enfrentar aquela sensação de desânimo ao pensar que tinha que trabalhar no dia seguinte (embora os domingos à noite sejam universalmente o momento no qual essa sensação apareça para todos, inclusive para mim, especialmente quando tenho que estar em sala de aula às sete da segunda feira...). 
Mas, nos últimos tempos, tenho desenvolvido uma atividade que realmente balança a minha percepção do correr das horas. Falei dela aqui: o desenho e a execução de peças de joalheria. Dai, nos dias que posso dedicar a isso, é assim: acordo cedo, tomo café, subo para o atelier (que fica no segundo andar da minha casa). Ligo as luzes, uma música, abro a janela prá minha cadela ficar me vendo e não se sentir sozinha, sento na bancada. De repente, sem que eu tenha me dado conta... são duas horas da tarde e eu nem lembrei de almoçar (e nem de dar comida prá Frida, minha rottweiler, embora ela tenha me olhado várias vezes com aquela carinha de carente que só os cachorros sabem fazer...). 
Minhas mãos ficam destruídas: unhas quebradas, dedos lixados, queimados ou cortados, cheios de calos e ásperos, e eu... absolutamente contente! 
Vários dos amigos que sabem do que tenho feito me pediram para ver algumas peças que resultam desse processo. E hoje, como fiquei particularmente contente com o término de uma das peças - um anel em prata com uma granada - resolvi tirar umas fotos e postar aqui. 
Então, para aqueles que de vez em quando me perguntam com é o processo de trabalho, é assim: 

Você funde a prata 




Coloca na rilheira, que é onde se faz o lingote de metal com o qual se vai trabalhar, lamina na forma adequada à peça que vai realizar, e...

corta, lima, lixa, solda...




e voilà!... começam a aparecer os resultados do trabalho!

Anel em prata com quartzo rutilado 


Anel feito totalmente usando a técnica da forja, ou seja, martelando a prata até que ela assuma diferentes espessuras, de acordo com o desenho desejado.

Fiz, logo no início, alguns anéis que cobrem dois dedos da mão,  como este acima, mais tradicional, e o que está abaixo, que nada mais é que uma mola dando a volta no dedo anular e se 'esticando' por cima do dedo médio.
Depois que usei os dois por algum tempo sem acidentes, ou seja, sem que os dedos prendessem em nada, sem me arranhar ou puxar meu cabelo, considerei as peças terminadas. :)



Esse anel foi criado a partir de uma questão: como fazer um anel que ficasse exatamente no meio da mão?
A resposta, óbvia agora, mas nada simples de encontrar: descentralizando o aro, claro!


Me agrada a idéia de trabalhar de uma maneira 'limpa', ou seja, usando o mínimo possível de soldas e engastes na fixação das pedras.
 Esse anel acima é feito com a pedra presa apenas por rebites, ela permanece totalmente solta, e faz um barulhinho bonitinho quando mexo a mão.

O anel de baixo tem uma granada fixada apenas pela pressão do metal, sem soldas, engastes ou caixinhas prendendo-a. A pedra fica mais livre, com a luz podendo atravessa-la de diversos ângulos.



1.9.12

Aqueles gestos...

Esta semana, compartilhei no Facebook uma coletânea de registros de ações espontâneas que, em momentos diferentes e por razões das mais diversas, deixaram vir à tona o lado melhor dos sujeitos daqueles atos. Do rapaz que pulou em um mar agitado para resgatar o cachorro de uma turista em Melborne, passando por uma lavanderia que oferece a limpeza gratuita da roupa de desempregados que estivessem precisando disto para ir à uma entrevista de trabalho, até um grupo de cristãos que compareceu a uma Marcha do Orgulho Gay com cartazes nos quais se desculpavam pela intransigência da igreja católica em relação ao homossexualismo...  - e o abraço emocionado que um dos integrantes da marcha ofereceu a um dos homens cristãos -, ali se reuniam gestos totalmente diferentes, totalmente emocionantes e totalmente generosos. 
Fiquei pensando nisso e em como as pessoas, nos comentários da postagem, diziam o quanto haviam se emocionado ao ver as fotos. Eu mesma fiquei com lágrimas nos olhos ao ver algumas das cenas (embora ficar com os olhos úmidos, para mim, não seja exatamente algo raro). E me dei conta de quantos gestos como esses nos escapam, no dia a dia, simplesmente porque não foram registrados, porque ninguém falou deles, porque se perderam no tempo voraz que nos arrasta em um turbilhão de 'obrigações', 'necessidades' que criamos ou 'prazeres' que 'precisamos' ter. As ações negativas geralmente tomam uma proporção muito maior do que as que revelam algo de bom no mundo.
Passei o dia pensando nisso, e à noite, saí com amigos e fui a um recital de poesia. Não sou exatamente uma pessoa que aprecia a leitura de poesia. Claro, sei reconhecer a grandeza de alguns textos poéticos, mas confesso que a minha sensibilidade se vê muito mais instigada pela linha direta tomada pela prosa. Há exceções, porém. Ontem, ao ouvir uma amiga falar para o público presente um texto de sua autoria, percebi a sua emoção aflorando e lhe travando a voz. Já estava comovida com o texto, fiquei mais ainda com a visão daquela coragem rara: se expor, se desnudar, traduzir o intraduzível em palavras, em um palco, perante uma platéia cuja receptividade é sempre uma incógnita. 
O momento passou, ela terminou lindamente a poesia e foi merecidamente aplaudida. Mais tarde, já em uma mesa de bar, estávamos conversando sobre isso: em como a emoção pode te 'pegar' nos momentos mais inesperados. E, muitas vezes, inadequados. E, justamente ela, me dizia: 'eu tenho uma enorme dificuldade em chorar, mas quando sai, é incontrolável'. 
Não estávamos falando desse choro que vem quando assistimos a um filme que nos comove ou quando vemos uma reportagem sobre algo que nos sensibiliza. Falávamos daquele tipo de choro que vem como cachoeira, rompendo todas as barreiras da educação e do bom senso, e nos atropela sem que tenhamos qualquer tipo de controle. Catarse.
Quando temos sorte, esses momentos acontecem elegantemente em privado, só nós e a nossa dor. Dor, essa com D maiúsculo, tem sempre o seu 'quê' de vergonha, de algo que deve permanecer oculto, longe de olhares estranhos - ou, às vezes, mesmo longe dos olhares familiares. Mas (ah, vida irônica e cruel!...), às vezes essas ocasiões aparecem em momentos absolutamente inadequados: dentro de um ônibus cercados de rostos estranhos, no meio de uma conversa aparentemente trivial com alguém... até na leitura pública de um poema. 
A noite se estendeu agradavelmente até a madrugada fria, voltamos todos para nossas casas, mas o tema não me abandonou: acordei ainda tocada pelo poema e pensando nas histórias compartilhadas em torno da mesa de bar. Lembrando também, além disso tudo, daqueles gestos de generosidade alheia que, em sua maioria, permanecem anonimamente recolhidos apenas às vivências de quem os experimentou. Foi inevitável, a partir da junção dos dois temas, me lembrar das minhas próprias vivências, de uma em especial, que junta exatamente essas duas situações: o choro incontrolável e a beleza do gesto generoso de um estranho.
Paris, 2010, quase no final do período em que morei lá. Cansada, depois de quase um ano me sentindo estrangeira e sozinha, longe dos amigos, longe da minha família e atravessando uma fase difícil. A capital francesa tem esse bônus: oferece lugares lindos onde se pode sofrer em paz. E lá estava eu, no Parc de la Villette, caminhado, pensando na vida, sentindo frio e desamparo. Sentei um um dos bancos lindos (mas gelados!) de metal que estão polvilhados por todo o parque, fiquei um pouquinho quieta, só com minhas lembranças e pensamentos e... veio. Incontrolável, aquele tipo de choro que, quando acaba, parece que você levou uma surra. Não tem nada de elegante, não tem nada de discreto, não tem nada de contido: está mais para (desculpem, mas é a melhor comparação em que consigo pensar) um acesso incontrolável de vômito: violento e vergonhoso.
Quando comecei a me acalmar, e começava a me congratular por ser inverno, o parque estar bem vazio e ninguém ter me visto, percebo que tem alguém parado, em pé, ao meu lado. Ainda soluçando, levanto o rosto e vejo: um policial. Sério e uniformizado. A primeira coisa que meu humor negro me fez pensar foi: 'putz, ele vai me dizer que é proibido chorar em público nos parques de Paris'. Olhei para o rapaz e ele me perguntou: 'você está bem?'. 
Ah!.... O que responder nessas horas? Dizer que sim, que está tudo bem? Depois do moço ter me visto ter algo parecido com um 'siricutico' no meio do parque? Resolvi ser 'meio' sincera: 'não estou ainda, mas vou melhorar, não se preocupe'.
Achei que o rapaz fosse se afastar polidamente, mas ele permaneceu ali, me olhando por um tempo calado, até que disse algo que me surpreendeu absolutamente. Com uma delicadeza rara, ainda de pé, ele falou baixinho: 'Se você quiser conversar, eu posso ficar aqui. Posso te ouvir.'
Escutar essa oferta tão generosa de um completo estranho, de uma pessoa que estava ali para manter a ordem e não deixar que jogassem lixo no chão ou cometessem atos de vandalismo no parque, claro, me fez chorar mais ainda. Finalmente, silenciosamente, ele se sentou. Segurou pacientemente o meu ombro enquanto eu voltava a soluçar, sem dizer uma palavra. A presença dele me disse tudo o que eu precisava: até um estranho pode se importar com você, às vezes. E, às vezes, isso é suficiente. Não é o que você precisava realmente, mas ajuda.
Aos poucos consegui parar novamente de chorar, garanti a ele que ia ficar tudo bem, levantei, agradeci, me despedi e fui caminhado em direção ao metrô para retornar para casa. Nunca soube nem o nome dele, mas o seu gesto permaneceu comigo até hoje e, ainda hoje, é suficiente me lembrar dele para que me brotem lágrimas nos olhos. 
Fiquei pensando neste como um daqueles gestos de generosidade que acontecem anonimamente, sem registro, sem nada que lhes marque a não ser a memória. E descrevê-lo aqui foi a minha maneira de eternizá-lo e agradecer aquele rapaz que um dia chegou perto de alguém que nunca tinha visto antes e ofereceu os seus ouvidos e o seu conforto. Mais que isso, ofereceu a sua humanidade.