24.4.11

Um filme que dói


Saí de 'L'illusionniste' extremamente desconfortável. O que nem sempre é um mau sinal. Já escrevi o suficiente sobre arte e cinema nos posts anteriores para deixar claro que, para mim, este é um dos papéis fundamentais de qualquer manifestação humana que pretenda se intitular 'arte': te jogar fora da tua zona de conforto. No conforto ninguém se mexe, a sensação é algo como: 'prá que eu vou sair daqui se está tudo tão bom?'
Daí que, por vezes, estas 'sacudidas' proporcionadas por um livro, filme, ou uma pintura, instalação, grafite, são bem vindas para nos darem a oportunidade de tirar a poeira de posições já estabelecidas, opiniões formadas, coisas que já tomamos como certas.
Mas o meu incômodo com o filme do Chomet era de outra ordem. Plasticamente o filme é belíssimo, mais bonito, na minha opinião, que o anterior do diretor, 'Les triplettes de Belleville' - cujo título, aqui no Brasil, foi estranhamente traduzido como 'as bicicletas de Belleville' (triplettes refere-se ao trio de velhinhas do filme, nada a ver com as bicicletas).
Então, esteticamente ele é interessante, o roteiro toma por base algo escrito por Jacques Tati - em outras palavras, não há possibilidade de ser ruim - e a trilha sonora é linda, composta e executada em boa parte por Malcolm Ross, onde estava o meu incômodo?
Saí do filme com todas as questões que ele levanta girando na mente: um panorama no qual a arte está em decadência, submetida às leis do 'mercado' que dita o que o público irá consumir; um mundo que aponta para um desencanto absoluto, resumido pela frase única que o mágico deixa em seu bilhete de despedida ('les magiciens n'existent pas'); a ascensão do consumo como moldura que irá enquadrar todos os comportamentos sociais; e, claro, a questão maior que sempre guiou a obra de Tati: o deslocamento do sujeito no mundo. Seu Hulot é o maior exemplo disso, e Chomet pega bem o espírito do personagem mais famoso de Tati, somado à hábil transposição do físico desengonçado do diretor para o desenho da animação, e constrói Tatischeff, o ilusionista que dá título ao filme (apenas como curiosidade, Tatischeff era o nome original de família de Jacques Tati).
Conversei com pessoas que também assistiram à animação, na tentativa de localizar o que me deixava tão desconfortável com ela, e cheguei à algumas pistas: a figura de Alice, a menina que passa a acompanhar o mágico em suas andanças, a estranha passagem que - através dela - o diretor parece apontar rumo a um mundo 'adulto' no qual o encantamento não possui mais um lugar, a crueldade com que são tratados os representantes daquele velho mundo de magia e ilusão... enfim, muitas questões que se embaralham e dão, ao sairmos do cinema, a impressão que o filme continua a acontecer em nossas mentes.
Mas a melhor definição que consegui foi através da frase sucinta de um amigo, que, ao se referir ao filme, me disse: "Esse filme dói".
Cheguei à conclusão que ele tem razão. Não foi exatamente incômodo o que eu senti com a animação de Chomet. Foi dor.


17.4.11

Ai(nda) Weiwei: sunflower seeds

Ai Weiwei - Sunflower seeds, 2010

















Não resisti ao trocadilho (hor-ro-ro-so, eu concordo) com o nome do artista Ai Weiwei, sobre o qual escrevi no post anterior.
Quis voltar à Weiwei para comentar sobre a instalação que ocupa atualmente o subsolo da Tate Modern, em Londres, chamada 'Sunflower seeds'. Em toda a extensão da área, o artista espalhou um enorme tapete de pequenas peças em porcelana que imitam sementes de girassol. Novamente, como em tantas situações da produção artística contemporânea, a obra se faz na interação - e, certamente, com o esforço de compreensão - do espectador. Se entrarmos no ambiente e olharmos rapidamente aquela vasta extensão coberta de pequenas sementes, corremos o risco de nem mesmo percebermos que elas não são naturais.
E a história do enorme esforço realizado para a sua execução é interessantíssima! Weiwei mobilizou muitos moradores de Jingdezhen, uma província chinesa conhecida pela produção de porcelana, para 'fabricarem' as sementes. Foram 1.600 pessoas confeccionando artesanalmente, uma a uma, as pequenas contas malhadas em preto e branco. O processo está descrito no vídeo abaixo, que também é disponibilizado no site da Tate (Tate Modern| Current Exhibitions | The Unilever Series: Ai Weiwei ) e no local da exposição.
É claro que depois de assisti-lo, o contato com a obra se enriquece. Podemos pensar nessa banalização do consumo na sociedade atual, que faz com que as mercadorias simplesmente 'apareçam', como se tivessem apenas 'nascido' - e não tivessem passado por um processo complexo de fabricação, atrás do qual estão milhares de pessoas. Podemos pensar em um mundo onde tudo está cada vez mais homogeneizado, tornando difícil que reconheçamos as diferenças e sejamos vistos como aquele monte de sementes aparentemente iguais. Podemos mesmo pensar no paradoxo vivido pela China, um país que se tornou um fortíssimo produtor das mercadorias que o mundo inteiro consome, mas que sofre uma tensão que o coloca entre ser uma das principais molas da produção capitalista contemporânea e, ao mesmo tempo, um país com uma cultura milenar.
Vi a instalação de Weiwei em novembro passado, em Londres. A sua dimensão é impressionante, a quantidade de sementes espalhada é enorme, e o vídeo colabora imensamente para que a obra nos toque e nos diga algo. Mas, como toda produção artística de qualidade, para além de tudo isso, é a emoção que nasce no espaço obra-espectador que dá a sua real dimensão. A instalação de Weiwei certamente nos faz pensar. Mas, mais que isso, nos emociona.


16.4.11

Les adultes terribles












Template, 2007
(exposto na Documenta XII, Kassel. Uma composição com portas e janelas de templos destruídos na China)



Forever bicycles, 2003
(exposta na Bienal de arte de São Paulo em 2010. 42 bicicletas da marca mais vendida no país)














Coca-cola, 1994 (Vaso da dinastia Ham com logotipo da Cola-cola)

Snake Ceiling, 2009
(Instalação de teto realizada com 360 mochilas)




"Arte? Ah, a arte preenche nosso tempo, nos relaxa, nos diverte..." Quantas vezes já ouvimos declarações semelhantes à essa? Acho muito curioso escutá-las, e ver que muitas pessoas ainda se referem à arte como se fosse essa espécie de 'parque de diversões' para adultos.
E aí acontece um episódio como esse que vem se desenrolando nas duas últimas semanas, envolvendo o artista plástico chinês Ai Weiwei.
Weiwei é um dos artistas contemporâneos chineses mais conceituados atualmente. Sua obra, permeada por um forte caráter político, sempre incomodou ao governo chinês, e ele foi mantido, nestes últimos anos, sob uma cerrada vigilância. O artista é um excelente exemplo de uma arte contemporânea que procura, cada vez mais, uma forte interlocução com seu espectador. Podemos mesmo dizer que seu trabalho, muito mais que aquilo que é concretamente exposto nas galerias ou museus, acontece na percepção de quem entra em contato com ele, em uma interseção entre arte, estética, filosofia, política.
Weiwei já trabalhou com diversos temas. Uma de suas últimas obras foi realizar um esforço para reunir os nomes de todos os estudantes chineses mortos no terremoto de 2008. Pode parecer banal, mas a questão central é que estes alunos estavam dentro de escolas que desabaram e que, possivelmente, tenham sido construídas pelo governo chinês com a utilização de materiais mais baratos e inadequados.
E no domingo, dia 3 de abril, Weiwei foi preso, no aeroporto de Pequim. Mantido até hoje incomunicável, é acusado de ações subversivas contra o governo chinês.
Um grupo de artistas está organizando um protesto mundial contra a prisão, chamado "1001 chairs for Ai Weiwei", que consiste em, neste domingo, 17, sair de casa com uma cadeira e sentar-se à frente de um edifício governamental chinês, seja em que país for.
Há algum tempo atrás, utilizava-se a expressão 'enfants terribles' para se referir a esse tipo de artista questionador das regras já estabelecidas. O significado (algo como 'crianças levadas'), sempre teve um viés meio pejorativo, na minha opinião. Era como se esses homens, que estavam pensando e questionando muito seriamente coisas longamente colocadas como 'dadas' - ou seja, coisas postas como algo inquestionável - , estivessem seguindo apenas um certo impulso infantil de 'bagunçar' a ordem tão tranquilizadora do mundo.
O abuso e a arbitrariedade do governo chinês são, obviamente, inaceitáveis. Mas não consigo deixar de pensar que, ao menos, eles reconhecem com clareza o poder da arte. As crianças cresceram. E ameaçam governos. Foram promovidas à 'les adultes terribles'...

8.4.11

Humanidade



"O que Bruno von Falk tinha a ver com isso? Não era apenas soldado do Reich. Não estava movido simplesmente pelos interesses do regimento e da pátria. Era o mais humano dos homens. Pensou que procurava, como todas as criaturas, a felicidade, o livre desabrochar de suas faculdades, e que (como acontecia com todas as criaturas, infelizmente, nestes tempos) esse desejo legítimo era a todo instante contrariado por uma espécie de razão de Estado que se chamava guerra, segurança pública, necessidade de manter o prestígio do exército vitorioso."



O trecho acima foi retirado de um romance. Um romance escrito por uma judia. Um romance escrito por uma judia na França em 1942. Um romance escrito por uma judia que foi morta naquele mesmo ano, em Auschwitz.


Irène Némirovsky tinha 39 anos quando foi deportada para a Alemanha e morta no campo de concentração. Deixou, com a filha, as páginas manuscritas de Suite française, um livro que foi publicado 62 anos após a sua morte. Nele, Irène narra, de forma extremamente realista, o período de ocupação alemã na França durante a Segunda Guerra.
É através dos pequenos dramas, das minúsculas histórias das famílias afetadas pela guerra que a escritora torna muito palpável para o leitor o que deve ter sido este período para o cidadão comum, aquele que foi fortemente atropelado por um conflito entre nações que, aparentemente, não lhe dizia respeito.
'Suite francesa' não é um livro sobre a guerra, embora se encontre no cerne dela. É um livro sobre a natureza humana. Vemos, desfilando pelas páginas, situações diversas: a perda dos bens, a perda das vidas, a transformação das cidades e do cotidiano. As pequenas alegrias que passam a funcionar como tábuas de salvação diária, os gestos de solidariedade, as mesquinharias e pequenos conflitos que, no limite, têm o poder de revelar o pior da alma humana.
Mas o que é mais emocionante, na minha opinião, é a forma como Irène, em uma absoluta entrega à escrita, descreve os alemães, os invasores, os 'boches', como eram pejorativamente chamados pelos franceses. Aqueles que eram unanimemente odiados, no relato da escritora, são simplesmente, impressionantemente, surpreendentemente... humanos! Humanos como ela. Humanos como todos.
É o que vemos na descrição que reproduzi acima. Bruno von Falk é um soldado do Reich. Ainda assim... afirma a sua humanidade. Ele quer o mesmo que todos: ser feliz. À semelhança de Shylock - o personagem criado por Shakespeare para o 'Mercador de Veneza' -, que é judeu e reafirma a sua humanidade pela semelhança com outros homens, seus desejos, reações e aspirações, o personagem de Irène também o faz.
Irène sabia que seria deportada. Como judia, antevia que seu fim seria em um campo de concentração. No bilhete que enviou ao seu editor, referindo-se ao livro, ela escreveu: "Caro amigo... pense em mim. Escrevi muito. Suponho que serão obras póstumas, mas isso faz passar o tempo." Ainda assim, conseguiu ter a lucidez de olhar de frente o seu algoz e enxergar a sua humanidade.
Em 1960, Hannah Arendt chocou alguns ao escrever "Eichmann em Jerusalém: um retrato sobre a banalidade do mal", livro no qual relata o julgamento do famoso nazista e o descreve como o que ele realmente era: não um monstro, mas apenas um funcionário. Medíocre, pequeno, banal, cumpridor de ordens. Ela quis tratar, na verdade, sobre a capacidade do Estado de transformar o exercício da violência homicida em um ato burocrático, através da sua tradução em gráficos, estatísticas e metas a serem atingidas. Arendt mostra, através de Eichmann, como as pessoas passam a ser agentes neste processo e não se sentem responsáveis, escondidas atrás da velha e puída cortina de 'eu estava cumprindo ordens'.
Irène Némirovsky, vinte anos antes, conseguiu, de maneira comovente, transformar isso em arte.

7.4.11

Epígrafes


Adoro epígrafes. Acho que elas fornecem um 'mapa' para quem vai começar a ler um texto, seja este de que ordem for: conto, crônica, ensaio, artigo, romance.
É como se quem escreveu o texto tentasse condensar o que irá dizer nas tantas páginas que se seguem naquela frase inicial, naquele trecho, naquela citação. Para mim, é como se ele me dissesse: 'Olha, o que vou tratar nesse monte de letrinhas que estão à sua frente é mais ou menos isso aqui. Dá uma olhada para ver se te interessa...'.
Acho interessante verificar a forma como, de acordo com as mudanças na obra de um autor, ele também vai modificando o tom das suas epígrafes, e vice versa. Um dos escritores brasileiros que mais gosto é o carioca Rubem Fonseca. E adoro a habilidade com a qual ele lança mão das epígrafes nos seus livros! Cada uma delas dialoga com as que lhe antecedem e sucedem, dando origem quase a uma narrativa à parte.

Mas, na verdade, esta conversa toda é por conta de um livro lindo, que possui uma das epígrafes mais bonitas que já li, e que diz:

"A missanga, todas a vêem.
Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as missangas.
Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio costurando o tempo"

A epígrafe abre o livro de contos 'O fio das missangas'
, do escritor moçambicano Mia Couto.

1.4.11

Encontros

Lendo um interessante trabalho de conclusão de curso de arquitetura, que desenvolve considerações a respeito do papel da arquitetura no cinema, lá pelas tantas me deparo com a relação que o autor ressalta entre a obra de Edward Hopper e Alfred Hitchcock, mostrando, imageticamente, exemplos de situações nas quais as cenas do pintor norte-americano serviram de inspiração ao diretor inglês. A mais famosa delas: a casa de Norman Bates, em 'Psicose', que é, ipsis literis, recriada a partir de uma tela de Hopper.

Hopper - House by the railroad, 1925


Residência de Norman Bates no filme Psicose

Fiquei pensando, a partir daí, em outros exemplos deste tipo de encontro entre dois artistas, nos quais o trabalho de um serve de inspiração ao outro. Há muitos posts atrás, citei uma dessas situações, que envolvia Godard e Bertolucci, respectivamente em 'Band à part' e 'The dreamers'. Ali tratava-se de uma citação, uma homenagem de um cineasta a outro e, ao mesmo tempo, uma forma de salientar que a questão que havia suscitado aquela cena em 1964 havia se tornado ainda mais presente em 2001.
Lembrei então, de outro encontro que gosto muito e que, por não envolver artistas muito conhecidos, normalmente passa despercebido: o encontro entre Jack Vettriano e Leonard Cohen. Não tenho idéia se eles já se encontraram pessoalmente alguma vez, mas são freqüentemente vistos juntos em situações como essas:





Dance me to the end of love - Vettriano, 2006




Her secret life - Vettriano, 2006





O trabalho de Vettriano, na verdade, é profundamente influenciado pela música. Várias de suas telas possuem títulos de canções bastante conhecidas, mostrando o quanto um artista nunca tira nada do nada, o quanto uma obra é sempre o resultado de uma teia de relações que se estabelece na mente de seu criador entre tudo o que a povoa e algo concreto - uma música, um livro, um filme, uma pintura - que ele quer jogar no mundo. Esse é o melhor argumento para justificar que, não importa a área a qual se pertença, o tema que possa nos interessar e o foco dos nossos trabalhos, o conhecimento, qualquer que seja ele, sempre nos trará a possibilidade de estabelecermos ligações inusitadas, construirmos perspectivas inovadoras e aprimorarmos a nossa criatividade...