20.9.15

Será que ela volta?



Muito já foi dito sobre "Que horas ela volta?", filme da diretora Anna Muylaert. A ótica dos estratos sociais em constante conflito - seja esse silencioso ou barulhento - é, certamente, a mais visível no roteiro. A profusão de críticas, resenhas ou reportagens a respeito dessa faceta da história faz com que entremos no cinema com aquela sensação de que conhecemos a trama. E conhecemos mesmo! Se ela não aconteceu nas nossas casas, aconteceu nas casas de parentes ou amigos: a empregada doméstica que é visível/invisível. Que é pessoa/não pessoa. Que é um dos elementos da engrenagem que faz aquela dinâmica familiar funcionar, mas tem espaços bem delimitados nos quais deve transitar.

Apesar de todas essas questões serem as mais visíveis, foi outro aspecto do filme que me chamou a atenção. Saí do cinema com a ideia que o filme de Muylaert é, além de um dedo na ferida da nossa desigualdade social, uma história sobre mulheres e escolhas. Melhor dizendo, sobre mães e escolhas.

Val, a personagem lindamente interpretada por Regina Casé, fez uma escolha quando deixou Recife rumo à São Paulo em busca de emprego. Nessa escolha, deixou suas raízes e sua filha para trás. Em troca, além do emprego de doméstica da residência sofisticada no Morumbi, ganhou um filho postiço: Fabinho, filho da sua patroa, Bárbara. Essa, por sua vez, também fez as suas escolhas: escolheu a carreira, o sucesso, o glamour das entrevistas e das festas. Em troca disso, deixou para trás o casamento e a maternidade. Embora tenha marido e filho, estes são apenas personagens sem consistência na sua vida. Homens enfraquecidos procurando colo e compreensão. Aliás, esse é um aspecto fundamental do filme: ele é um enaltecimento às mulheres. Val, Bárbara e Jéssica são os pontos de apoio a partir dos quais o filme se desenvolve. Os personagens masculinos são fragmentados, incompletos, inconsistentes, que parecem dar eco contínuo à indagação jogada pelo título do filme: que horas ela volta?




As escolhas de Val e de Bárbara parecem consolidadas. Até a chegada de Jéssica. Filha que foi deixada em Recife por Val, ela vai à São Paulo fazer o vestibular para arquitetura. E a sua chegada será o elemento que irá desequilibrar tudo que parecia tão estável. Jéssica é a filha de Val, mas não apresenta o comportamento que seria esperado dela, ou seja, não se restringe aos ambientes e às conversas 'permitidos' à 'filha da empregada'. E por que deveria? Ela não se vê naquele papel. Deixada com uma tia no Recife, via a mãe chegar, de tempos em tempos, bem vestida e cheia de presentes. Nunca compreendeu exatamente que tipo de vida a mãe levava em São Paulo e não parece disposta a se enquadrar no que esperam dela.

Descobrimos, ao longo do filme, que Jéssica também fez uma escolha. Ao ir para São Paulo, deixou em Recife uma parte de si. Escolheu a possibilidade de cursar arquitetura, mas acabou por reproduzir em sua história aquilo que mais a fazia sofrer na relação com a mãe. 

Acontece toda uma sequência de conflitos ao longo do filme, causados pela inobservância de Jéssica daquilo que não está escrito, mas que se espera que todos saibam: há uma série de regras não ditas a partir das quais espera-se que o outro se comporte. E esse é, com certeza, o ponto central da trama. Mas foram as escolhas que ficaram comigo. Foi sobre elas que me vi pensando ao sair do cinema. Às vezes temos noção de que estamos escolhendo. Mas, em outras situações, só percebemos depois que essas já foram feitas, o tempo passou e não há mais como voltarmos atrás.

Nesse sentido, me parece que a personagem mais penalizada é justamente aquela que parece a mais privilegiada. Talvez Bárbara seja, das três mulheres, aquela que menos clareza teve nas escolhas que fez e aquela que tem menos possibilidade de recuperar o que perdeu. Ao deixar o filho e o marido no caminho - não com o corte seco da partida como fizeram Val e Jéssica, mas nos minúsculos gestos diários, nas pequenas ausências rotineiras, nos olhares e carinhos esvaziados - Bárbara construiu um caminho no qual os retornos são mais difíceis. Assim, se o final do filme nos traz uma certa 'redenção' através da mãe e da filha que tentam, aos poucos, voltar a se conhecer e recuperar o seu relacionamento, também nos traz a tristeza (ou a sensação de 'vingança' para alguns) da mulher que parece ter tudo de melhor em sua vida material e profissional, mas é absolutamente desprovida de relações verdadeiras de afeto.

Somos, sempre, reféns das nossas escolhas. Às vezes elas são feitas de forma consciente. Outras vezes, não. Uma coisa é certa: é verdadeiríssimo aquele ditado que diz: "fazemos nossas escolhas e nossas escolhas nos fazem". Val e Jéssica 'foram', mas tiveram a possibilidade de 'voltar', mesmo que um pouco tarde. Para a personagem Bárbara, a indagação parece ser: será que ela volta?




25.6.15

Um livro e um filme

A relação entre mãe e filha é uma das coisas mais bonitas do mundo. Desde que elas continuem engessadas nesses papéis: mãe. filha. Quando uma delas se mexe e, além de mãe ou filha, assume o seu lado mulher, a coisa geralmente desanda. Ao menos por um tempo.

Já passei daquela fase em que a gente precisa 'apagar' simbolicamente os pais dentro da gente para que passemos a existir como adultos autônomos. E, por experiência própria, posso afirmar: não é um momento fácil. Quem trata disso é Freud, que afirma justamente essa necessidade de "matar" aqueles que nos geraram para, a partir daí, caminharmos com as nossas pernas. Ah, falar é fácil, 'seu' Freud, fazer é outra história... Esse caminho é pautado por muitas lágrimas, muitos desentendimentos, muita insegurança. Apesar disso, é um caminho absolutamente essencial para todos: pais e filhos. Para que atinjam algum tipo de verdade - e respeito - na sua relação como adultos. Sempre ouço calada e com muita desconfiança aquele discurso bonitinho que afirma 'minha mãe é minha melhor amiga', etc... especialmente se vem de pessoas muito jovens. Na minha opinião, se isso acontece, a transição ainda não se deu. As duas ainda não saíram daqueles papéis que, acreditaram, seriam eternos: mãe e filha. Quando a filha se torna uma mulher, ou, em casos mais raros, quando a mãe deixa seu papel de mãe ser ofuscado por seu lado mulher acontecem os inevitáveis embates. Que, depois de superados, até podem dar lugar à amizade verdadeira. Mas com a relação - e os papéis - redefinidos.

Digo isso à propósito de duas obras com as quais tive contato recentemente: um livro e um filme.

No romance "Uma Duas", a jornalista Eliane Brum fala disso, lindamente, poeticamente, visceralmente: uma mãe e uma filha. Uma mãe que tentou, por todos os meios ao seu alcance, que a filha continuasse 'filha' eternamente. Uma filha que se perdeu da mãe - e, consequentemente, de si mesma - no seu processo de virar mulher. Um antagonismo que incomodará, acredito, especialmente às mulheres que lerem o romance. Muitas se reconhecerão nas situações extremadas, exageradas, absurdas traçadas por Brum. Não porque já as tenham, efetivamente, vivenciado. Mas porque os dramas desenhados no romance as lembrarão dos seus próprios, das suas buscas, dos seus medos, das suas raivas (sim, que somos todas humanas e nada mais humano do que sentir raiva de quem, naquele momento, te oprime), dos seus ressentimentos. Saí do romance abalada, mexida, incomodada, mas com uma certeza: ele foi escrito por quem sabe do que fala. Brum leva a sério aquela frase que diz que a literatura não é feita de amenidades. Definitivamente, não há nada ameno em "Uma Duas".

O livro começa na voz da filha, que narra a história do único ponto de vista possível: o seu. Sob aquele prisma, a mãe é um ser nojento, dominador, perverso, doentio. Vamos seguindo pelo romance e, a certo ponto, essa mãe acha a sua voz e começa a nos apresentar a sua versão. E aí entendemos que, como tudo na vida, a mesma história será diferente a depender de quem a narra. Nos deparamos com uma mãe frágil, despreparada, imatura, insegura que, por sua vez, se reporta a um pai opressor, dominador, etc... Provavelmente, se a esse homem fosse dada uma voz, descobriríamos alguém com as suas próprias mazelas, inseguranças, medos e traumas. E por aí a história se repete: cada um de nós tentando lidar o melhor que pode com seus próprios tropeços, fragilidades e dificuldades. E nem sempre conseguindo.

A outra narrativa é a de um filme, o norte americano "Pássaro branco na nevasca" (White bird in a bizzard, 2015), de Gregg Araki. Nenhuma crítica que li sobre o filme apresentou segurança na hora de classifica-lo: drama, terror, comédia, suspense foram algumas das categorias nas quais ele foi inserido pelos diversos sites que o analisam. E, realmente, ele não se insere com clareza em nenhuma dessas classificações. Vemos na tela um binário mãe / filha vivido pela lindíssima Eva Green e por Shailene Woodley, no papel da filha que está virando mulher. Somos apresentados à relação perfeita que existia entre as duas enquanto Kat (o nome da personagem) era o 'bichinho' da mãe. À medida que a menina cresce, e o papel de mascote vai sendo deixado para trás, a mãe envelhece. Percebemos então a dificuldade com que Eve, a mãe, atravessa esse processo. Casada com um homem aparentemente apagado (interpretado por Christopher Meloni, ótimo em sua contida interpretação de um homem submisso, em especial se lembrarmos do mesmo ator como o policial charmoso e durão da série SVU), ela é exuberante demais, bonita demais, fogosa demais, para se contentar em ser apenas uma esposa e... mãe.

Ao contrário da situação mais corriqueira em que a filha recusa-se a permanecer em seu papel de 'filha' e deseja tornar-se mulher, no filme de Araki é a mãe que se recusa a engessar-se em seu papel materno, e abandonar a sua porção mulher que, à medida em que a filha cresce, se vê cada vez mais ameaçada. Para além dos acontecimentos que pontuam a narrativa - o sumiço da mãe, a tentativa da filha de lidar com isso, o pai que, aos poucos, vamos descobrindo ser diferente daquilo que imaginávamos à princípio - a questão inicial é a mesma do romance de Brum: a transição, sempre difícil, dos papéis de mãe e filha para os de duas mulheres que - apesar de serem mãe e filha (e não por causa disso) - se amam.

Não posso dizer como isso se dá na relação entre pai e filho, mas arriscaria dizer que existem semelhanças, muito embora com as mulheres seja (sempre!) mais complicado. Mulheres falam mais, sentem mais - ou expressam mais o que sentem - e dramatizam mais. Em um processo que não é fácil, essas características têm o poder de potencialização. A transição do papel de filho para o de adulto nos transforma - e aos nossos pais - em, literalmente, outras pessoas. E nem sempre essas pessoas diferentes conseguem manter a mesma dinâmica na relação. Ou encontrar uma dinâmica possível para que essa aconteça.

O mundo se mexe e se transforma e nós nos mexemos e nos transformamos junto. E um dos movimentos mais bonitos me parece ser aquele que nos permite a reaproximação, em novas bases, com aqueles que nos deram as nossas primeiras referências, a nossa segurança no mundo, os nossos valores. Nas palavras de Daniela Ervolino, "O que nos possibilita de sermos adultos inteiros, psicologicamente sadios e maduros, é justamente, após nos libertar das "amarras dos pais" e nos tornarmos independentes, conciliar-se com eles. Isso mesmo, primeiro se libertar para depois se aproximar, ainda que simbolicamente. Conciliar-se simbolicamente com pai e mãe, é uma coisa extremamente necessária, difícil e profunda, pois deve acontecer num nível ainda mais profundo, no nosso "inconsciente" infantil, não na consciência adulta de hoje que sabe justificar cada mágoa ou falta de nossos pais." 

Ser capaz de fazer esse movimento é algo que exige de nós maturidade, compreensão - conosco e com o Outro -, segurança. E nos move na direção daquilo que verdadeiramente importa: o amor. Acredito mesmo que seja aí que a transição para o mundo 'adulto' se complete e que nós estejamos, finalmente, livres para amar aquelas pessoas sem os pesados laços da obrigação. Sermos filhos sem sermos devedores. E, assim sendo, nos permitirmos exercer o amor puro e límpido, liberto das 'cracas' que se grudaram a ele durante os anos de navegação juntos.

No romance de Brum, apesar de todo o peso - excessivo ao ponto do quase doentio - da narrativa, tal transição acontece lindamente, perto do final da vida da mãe. No filme de Araki não há espaço para que isso ocorra. E talvez seja essa falta, mais do que os acontecimentos trágicos de toda a narrativa, que deixem, ao final do filme, uma sensação de tristeza muda em seus espectadores.




   


23.3.15

Um dos deuses mais lindos


A música de Caetano Veloso resume bem o que penso do tempo: ele é mesmo um dos deuses mais lindos. Presenciar a sua passagem, seja na gente, seja no mundo e nos que nos rodeiam é, de certa maneira, algo mágico.

Foi esse tempo "compositor de destinos", como diz Caetano, que presenciei nos últimos dias. E fiquei, entre feliz e emocionada, a cismar sobre isso que nos atravessa e arrasta a todos e que só prestamos atenção em ocasiões raras.

Explico melhor: há quinze anos atrás, mal acabando de cursar o mestrado, fui professora de alguns jovens que entravam em um curso de graduação. Futuros arquitetos, cheios de garra e vontade, cheios de vida e futuro, cheios de teorias e desejo, de dúvidas e certezas. Convivi com eles alguns anos ao longo do curso, presenciei o amadurecimento, os laços se formando, as brigas, os afetos, as conquistas. Participei da formatura, ganhei presentes, ganhei homenagens, ganhei colegas de profissão e, mais que isso, ganhei amigos.

Dez anos se passaram desde aquele final de curso. Embora tenhamos mantido o contato eventual, nunca mais havia encontrado com todos reunidos, nem sabia detalhes da vida de cada um. E nesse último final de semana, algo mágico aconteceu: uma reunião de vidas, de passado e de afetos. Uma comemoração dos dez anos de formatura. Uma ponte no tempo, que aproximou quem éramos há dez anos atrás de quem somos hoje. Passamos um final de semana juntos: ouvimos as histórias de todos, ficamos conhecendo maridos e esposas, filhos e carreiras uns dos outros.

Uma situação desse tipo causa sempre uma mistura de sentimentos: nostalgia, saudade, felicidades e tristezas. Vemos quem nos tornamos, sentimos orgulho por algumas coisas, pesar por outras, e, mais forte que isso, entendemos o que esse 'deus dos mais lindos' fez conosco. Conversamos sobre as dificuldades atravessadas: os falecimentos, as separações, as perdas, as decepções, os percalços de saúde... E as coisas boas, claro! Os casamentos, os filhos, as viagens, a carreira, as conquistas. Tanto tempo depois, a 'capa' de professora que conferia uma certa hierarquia já não existe mais, eu virei apenas mais uma colega no grupo, e essa sensação de que continuamos nos 'encaixando' - apesar de todas as possíveis diferenças - é muito boa! 

No final dos dias juntos, risadas e vinhos atravessados, constato o quanto o tempo foi generoso com todos. Dificuldades existiram, certamente, para todos. Mas a percepção que as atravessamos, as deixamos para trás e caminharemos para outras dificuldades e felicidades é o que fica de mais forte desse encontro. Dez anos se passaram e nós... continuamos aqui.

No final das contas, o mais legal de uma situação desse tipo, é que ela nos faz parar para pensar: qual é o sentido disso tudo mesmo? Nascemos, estudamos, batalhamos por uma carreira, construímos famílias e empresas, tentamos alcançar o 'sucesso' (seja lá o que isso possa representar para cada um), e tudo isso para que? 

Quanto mais o tempo passa, mais me certifico de que só há uma resposta a essa questão. Não consigo pensar em nada mais importante do que a troca de afetos como objetivo principal da vida. Nada me parece mais enriquecedor do que o convívio com o outro, o olho no olho, a gargalhada compartilhada, a solidariedade na hora certa. 

Essa 'viagem no tempo' que fiz - e na qual, mais do que encontrar com amigos, encontrei também com uma Eliana de quinze anos atrás - só me confirmou isso. E me fez sentir alegria, por mim e por cada um dos que estavam lá, e que conseguiram abrir uma brecha nos compromissos, nas obrigações familiares, na vida que segue, para olhar um pouquinho para trás, pedindo licença a esse tempo que pode ser tão cruel, e fazendo um passeio ali no passado para reencontrar com amigos de um outro momento. E, mais importante, para o grande reencontro: aquele consigo mesmo. 

Que venham mais dez anos e outros encontros!