20.12.10

Pescadores de Ilusões















"A minha alma está armada e apontada para a cara do sossego..." Assim começa 'Minha alma', música do Rappa, uma das mais tocadas nas festas aqui da Maison du Brésil.
Fiquei pensando esta semana que o que fazemos quando resolvemos vir para Paris é exatamente o que descreve o início da música: dar um tiro na cara do sossego. O sossego de falar o idioma já conhecido, o sossego da nossa casa, o sossego da nossa cultura, dos nossos amigos e da nossa família.
Damos um tiro na cara disso tudo para começarmos de novo em outro lugar, e conviver com uma cultura diferente, falar outro idioma, se habituar com outra geografia, com outros hábitos, com pouco espaço, com menos conforto, com um clima por vezes difícil e com muita, muita solidão.
Nos primeiros dias, tudo é uma descoberta: colocar uma carta no correio, ir ao supermercado, abrir conta em banco, desvendar os caminhos da cidade.
Uma vez aqui, conseguimos aos poucos, construir um certo conforto com o qual nos seja possível conviver durante seis meses, um ano, ou ainda mais, dependendo do tempo de permanência de cada um nas terras francesas. Fazemos novos amigos, franceses e brasileiros, estabelecemos uma rotina, aprendemos - e apreendemos - a cidade, melhoramos o nosso domínio do idioma. Depois de um tempo, já estamos nos sentindo quase habituados. Paris começa, lentamente, a se assemelhar à nossa casa.
E aí chega a hora de ir embora. Hora que já sabíamos que chegaria, mas que o fato de saber, e até de antecipar o que iríamos sentir, não a torna mais fácil quando finalmente ela se aproxima.
Pelo fato de já termos nos despedido de tanta gente que partiu antes de nós, pode parecer que já sabemos o que iremos sentir. É um engano, eu posso assegurar. Só se sabe quando chega o seu próprio momento, e as sensações são diferentes para cada um.
Hoje eu estou me despedindo de Paris e dos amigos que fiz aqui. Estou com saudades de casa, confesso que não aguento mais sentir frio e 'deslizar' na neve acumulada pelas ruas, sinto falta dos meus amigos do Brasil e dos lugares que gosto lá. Mas nada disso diminui a tristeza de me despedir das pessoas queridas daqui.
Também há uma outra despedida, menos evidente que essa primeira: nos despedimos de um 'nós' que só existiu aqui. É rara essa oportunidade: já adultos, começarmos uma nova vida - ainda que momentânea, ainda que passageira - em outro lugar, no qual tudo tem que ser construído. Nesse processo, descobrimos muito sobre nós mesmos. Escrevemos uma tese e nos reescrevemos junto. É um processo de crescimento, e como todos eles, difícil e doloroso. O desafio é equalizar esse 'eu' que passou a existir aqui, fora da nossa zona de conforto, com o 'eu' que deixamos no Brasil, e que parece ter ficado congelado à espera do nosso retorno. É esse desafio que me espera agora.
Ontem ganhei um poema de despedida. Escrito pelo Heraldo, um amigo filósofo que mora na Maison. É com ele que encerro este post, junto com algumas lágrimas e com uma voz que, dentro da minha cabeça, teima em cantar baixinho o refrão de outra música do Rappa: "Valeu a pena, ê, ê... Valeu a pena, ê, ê.... Ser pescador de ilusões...".

Do coveiro...
Aos amigos que partem

Resta-me agora chorar as ausências
Mergulhado na sombra da bandeira que desce
Silêncio póstumo, overdose de carência
Saudade de um nada que cresce

Recolho os 'fragmentos de memória'
Identifico os corpos que tombam
Com olhos marejados, sangrando inglórias
Ofício que me corta: eterno assombro

Acumulam-se próximo a mim
Amareladas folhas repletas de coração
Escritas de múltiplos destinos sem fim
Apagar: insígnia macabra dos que vão

Covas de uma profundidade ao infinito
Alegria que jamais retorna
Vermes, podridão, ossos sem espírito
Partida: cruel megera que me cobra

Preâmbulo de uma tristeza que se espalha
Pelo frio soturno e cortante caminharei
Um lamento que se escorre sobre o fio da navalha
Sou algoz daquilo que serei.

Heraldo Cristo


11.12.10

A grande roda de bicicleta















Fiquei uns quarenta minutos rodando em volta dela. Olhava, ela me olhava de volta também e dava mais uma volta, como que para se exibir para mim. Dei meia-volta para ir embora umas três vezes, mas, a cada uma delas, voltava sobre os meus passos e tornava a encará-la.
Em um dos meus ouvidos, um bichinho sussurrava: "Vai. Não pensa muito. Quando é que você vai perder esse medo bobo? Francamente!"
O que se empoleirava no ombro contrário dizia na minha outra orelha: "Prá que se arriscar? Você vai acabar tendo um ataque lá em cima. Sozinha. Sem ninguém para te ajudar. Já pensou que vexame?"
E foi assim, mãos frias, tremendo de frio e medo, apavorada, e com essas duas vozes internas 'brigando' dentro de mim que entrei na fila da 'London Eye', a maior roda gigante do mundo.
Eu, que não atravesso nem aquelas passarelas bobas sobre as avenidas. Eu, que na primeira vez que vim para Paris, inventei de subir a Torre Eiffel de escada e travei, no meio do caminho. Não subia nem descia. Não conseguia me mexer. Só tremia e sentia o vento levantando meus cabelos, compridos na época.
Eu, que tenho verdadeiro pavor de altura, surpreendi a mim mesma ao dar mais ouvidos ao meu desejo de ver Londres do alto do que aos meus receios. E fui. As fotos estão aí, para lembrar a mim mesma que, desta vez, eu olhei de frente para um dos medos. E foi lindo!