20.7.12

Dia do amigo?


Sou rabugenta. Muito. Implico com coisas que a maioria das pessoas acha totalmente naturais. Acho chatinhas, por exemplo, essas datas inventadas: dia dos namorados, dia da secretária, dia de... (coloque aqui uma profissão qualquer. E, antes que alguém pergunte, não vou falar no dia das mães e dos pais porque tenho amor à minha pele, né?...).
Sempre achei algo forçadas essas obrigatoriedades de presentes, jantares, telefonemas... Essas são atenções que – eu penso – deveriam ser espontâneas, sem datas marcadas para acontecer. Dessas tais datas pré-estabelecidas temos como resultados frequentes os restaurantes lotados, as floriculturas vazias de estoque, presentes comprados de última hora e uma mistura de atos que podem ser, verdadeiramente, movidos pelos afetos e outros que dizem mais de uma sensação de ‘obrigação’ ditada pela data.
De uns tempos para cá inventaram esse tal ‘dia do amigo’. Esse ano tive a surpresa de saber que existe o ‘dia do homem’... (e nem tem graça entrar em considerações a respeito do absurdo dessa definição). Fico pensando o que mais vamos criar para institucionalizar ‘categorias’ que existem naturalmente, e que, na maioria das vezes, não têm tantos motivos assim para comemorar. Enfim, todo mundo entendeu o ‘espírito da coisa’ da minha implicância. Como eu afirmei lá no início, sou rabugenta. Muito.
Dizer que o ‘dia do amigo’ deve ser todo dia é nada mais que um clichê, embora verdadeiro. Afinal, se estamos na vida das pessoas, compartilhando os mais diversos momentos, não há dias estabelecidos para que este afeto seja exercido. Ou exigido. Outro dia, conversando sobre isso, parei para tentar definir: afinal, o que pode ser considerado como um ‘amigo’? Vivemos cercados de todos os tipos de pessoas, com as quais mantemos relações das mais diversas: coleguismo, parceria, afinidade. Em geral, gostamos de quem nos cerca, mas... o que faz com que uma pessoa passe a fazer parte deste círculo restrito ao qual denominamos ‘amigos’? Cheguei a uma definição besta, mas que funcionou para mim: amigo, nas minhas ‘categorizações’ internas, é aquela pessoa para a qual eu posso telefonar às três da manhã de um dia qualquer, pedindo ajuda. Por qualquer motivo: tristeza, doença, pneu furado, assalto. Se eu me sentir à vontade para, naquele momento, telefonar, expor a minha fragilidade e pedir ajuda, sem vergonha ou constrangimentos, aquela pessoa é minha amiga. Ao menos na minha concepção.
E, hoje, no tal do ‘dia do amigo’, confesso que é sim, bonitinho, receber telefonemas de pessoas que gostam da gente e desejam um dia feliz. Especialmente quando sabemos que essas pessoas nos desejam dias felizes todos os dias. E daí, após colocar toda a minha rabugice para funcionar em relação ao tal dia, retomei a leitura de um livro que tem me feito companhia há alguns dias: ‘Swann’, de Carol Shields. E, lá, como se escrito para mim e para esse dia, encontrei a seguinte passagem:

“É verdade que Cruzzi está numa idade em que conta mais amigos entre os mortos do que entre os vivos, mas ainda é um homem que vive cercado de amigos. Cada vez mais, para deixar claro, ele procura a solidão, ou está irritadiço, ou sentindo-se cansado, estranhamente inquieto; mas não é capaz sequer de imaginar uma vida na qual a amizade não ocupe enorme espaço. Ele pouco espera de alguém que leva uma vida sem amigos, e fica a imaginar como tais infelizes arrumam força para viver”.

Pois é, como sempre, na maioria das vezes a arte nos dá as respostas. Das formas mais inesperadas.



4.7.12

Vamos falar sobre a morte?

Pensamos pouco nela. Aliás, na maior parte do tempo, fugimos do assunto, fingindo que não irá acontecer conosco e nem com ninguém que conhecemos. Atravessamos a vida - e a cidade - vendo os seus sinais, mas escolhendo ignorá-los. Seja nas notícias da violência urbana que proliferam na mídia, seja nos acidentes cada vez mais numerosos, ela nos rodeia. Signos da sua presença estão espalhados pelas avenidas e praças das metrópoles. De cemitérios a monumentos, estamos cercados pela morte.
Com Lewis Munford, aprendemos que a cidade dos mortos veio antes da cidade dos vivos. Mas, apesar da sua inevitabilidade e importância (ou talvez, por causa dela), a cultura ocidental não tem por hábito incorporar a morte como parte da vida.
Apesar disso, em alguns momentos, ela se impõe: naquele quase acidente que foi evitado por um micro segundo, no assalto do qual escapamos ilesos, na tragédia que vemos nas cenas dos telejornais. E, às vezes, escolhemos olhá-la de frente, voluntariamente. Assim será o evento que acontecerá a partir de amanhã no Museu da República, Rio de Janeiro. Pesquisadores de diversas áreas se reunirão para 'olhar' a morte dos seus mais diversos ângulos, no colóquio "Representações da morte no ambiente urbano".
Eu estarei lá, falando sobre um fenômeno bem contemporâneo: a 'neutralização' crescente que nos acomete em relação à vida e à própria humanidade, na palestra que intitulei "Em vez de rosto uma foto de um gol": algumas considerações sobre a vida, a morte e a humanidade.


Ah, para quem acompanha o blog e ficou com a impressão de que já viu essa foto antes, parabéns pela memória! Ela estava neste post aqui.

2.7.12

O que nos resta

Em dezembro de 2010, fui visitar um antigo campo de concentração nazista, perto de Berlim, chamado Sachsenhausen. Era inverno, fazia muito frio e ventava horrivelmente, e o guia que acompanhou o grupo em que eu estava era uma pessoa de excepcional sensibilidade. Tudo isso contribuiu para tornar aquela uma experiência forte e inesquecível. O que eu já tinha lido sobre esse período, de Hannah Arendt ('Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal') à Primo Levi ('Se isto é um homem?'), rodava na minha cabeça, junto com as cenas dos lugares visitados: os refeitórios, os dormitórios, o necrotério, a câmara de gás. Depois de um dia inteiro, saímos de lá, todo o grupo que havia se reunido pela manhã, exaustos e circunspectos. A volta para Berlim foi soturna, calada, cada um dentro do trem perdido em seus próprios pensamentos e conjecturas.
Depois de um dia inteiro sem comer nada, sentei para fazer uma refeição em um dos únicos lugares que estava aberto naquele final de tarde: a praça de alimentação de um centro comercial próximo ao meu hotel. Em um restaurante italiano, pedi uma massa. De repente, olhei em volta. Era um domingo, o lugar estava lotado, crianças corriam, casais passeavam de mãos dadas, famílias faziam o seu almoço tardio ou vistoriavam as vitrines das diversas lanchonetes ao redor. Tudo estava barulhento e movimentado, pleno de normalidade, mas, de repente... de repente... era como se nada daquilo fosse normal, nada daquilo fizesse sentido, nada daquilo fosse real. Aquelas pessoas todas, comendo, passeando, rindo, e... por trás dessa aparente normalidade, todo o peso daquele passado, daquela história negra e densa, como um esgoto correndo por baixo de um rio de águas limpas. Não estou me referindo aos alemães, claro. Acredito que a questão é muito mais abrangente do que pura e simplesmente responsabilizar uma nação. A responsabilidade é da humanidade. A mesma humanidade que estava ali, matando a fome ou a gula naquele lugar repleto de comida, foi capaz de matar de fome, maus tratos, frio, e de todos os tipos de torturas imagináveis, outra parte de si mesma. Outra parte da humanidade. 
A enormidade daquilo me atingiu de uma maneira tão completa que a fome foi embora, mesmo depois de um dia inteiro em jejum. Fui para um dos banheiros do local e chorei compulsivamente durante alguns minutos. Não sabia bem porque estava chorando. Chorava por todas aquelas pessoas mortas, escravizadas, violentadas, torturadas. Chorava pelas pessoas da praça de alimentação, aparentemente alheias à dor. Chorava por mim. 
Até hoje sou capaz de me lembrar com clareza a sensação de ligação que me atropelou: ligação com os que foram vítimas, com os que foram algozes, com os 'inocentes'que nada fizeram para deter a barbárie. Sensação de pertencimento à humanidade, ao mesmo tempo ao seu lado bom e ao seu lado ruim.
Este mês chegou, com atraso, ao Brasil, um filme alemão de 2007, 'An ende kommen touristen' (À espera de turistas), do diretor Robert Thalheim. O tema me interessava, fui logo no dia da pré-estréia: um jovem alemão vai trabalhar no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, que hoje está transformado em museu. Lá, conhece Krzeminski, um senhor idoso, antigo prisioneiro do campo, que permanece morando ali e faz depoimentos sobre a sua experiência para os visitantes. Desse encontro entre os dois personagens, e sobretudo, entre gerações compostas de valores e realidades tão distantes, se constrói a narrativa.
Esqueçam-se das cenas chocantes de prisioneiros nos campos de concentração: o filme de Thalheim passa ao largo desse estratagema fácil. Pelo contrário, a narrativa é aparentemente 'leve'. Digo aparentemente, porque, na verdade, o fato de escapar das imagens previsíveis da barbárie dá ao filme uma abertura que permite deixar de lado as respostas prontas para que possam aflorar as perguntas. E estas, claro, não são confortáveis.
Ficamos a nos perguntar sobre a legitimidade de transformar um local no qual foram assassinadas um milhão de pessoas em um ponto turístico que recebe essa quantidade de visitantes por ano. Ficamos pensando sobre as questões que ficaram para trás na história, mas que ainda hoje parecem cobrar uma pesada dívida dos jovens alemães. Ficamos curiosos sobre como deve ser, para alguém que padeceu naquele local (e que, teoricamente, deveria querer escapar para algum lugar muito distante), permanecer ali e ver a transformação - do local e a sua própria - em 'entretenimento'; e em como isso passa também a constituir a sua identidade. E, sobretudo, ficamos perturbados com a ausência de sentido histórico que parece assolar as gerações 'neutralizadas' pela mídia para a imensidão dos acontecimentos que tiveram lugar em alguns momentos no tempo. Em uma das passagens do filme, ao final de uma das suas palestras, um estudante pede a Krzeminski que mostre a tatuagem que lhe foi feita no campo. Ele levanta a manga da camisa, o estudante olha a tatuagem e parece decepcionado. 'Ela está apagada', diz para o velho. Ao que este retruca, amargo: 'É, eu não quis retocar'.
Saí do filme, e, conversando sobre ele, escutei da pessoa que foi comigo: 'ah, para mim, o mais interessante foi a opção do antigo prisioneiro em manter a sua dignidade'. Fiquei pensando sobre isso, e, finalmente, cheguei à conclusão de que manter a dignidade nem sempre é uma opção. Às vezes é só o que nos resta face a algumas situações.