2.7.12

O que nos resta

Em dezembro de 2010, fui visitar um antigo campo de concentração nazista, perto de Berlim, chamado Sachsenhausen. Era inverno, fazia muito frio e ventava horrivelmente, e o guia que acompanhou o grupo em que eu estava era uma pessoa de excepcional sensibilidade. Tudo isso contribuiu para tornar aquela uma experiência forte e inesquecível. O que eu já tinha lido sobre esse período, de Hannah Arendt ('Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal') à Primo Levi ('Se isto é um homem?'), rodava na minha cabeça, junto com as cenas dos lugares visitados: os refeitórios, os dormitórios, o necrotério, a câmara de gás. Depois de um dia inteiro, saímos de lá, todo o grupo que havia se reunido pela manhã, exaustos e circunspectos. A volta para Berlim foi soturna, calada, cada um dentro do trem perdido em seus próprios pensamentos e conjecturas.
Depois de um dia inteiro sem comer nada, sentei para fazer uma refeição em um dos únicos lugares que estava aberto naquele final de tarde: a praça de alimentação de um centro comercial próximo ao meu hotel. Em um restaurante italiano, pedi uma massa. De repente, olhei em volta. Era um domingo, o lugar estava lotado, crianças corriam, casais passeavam de mãos dadas, famílias faziam o seu almoço tardio ou vistoriavam as vitrines das diversas lanchonetes ao redor. Tudo estava barulhento e movimentado, pleno de normalidade, mas, de repente... de repente... era como se nada daquilo fosse normal, nada daquilo fizesse sentido, nada daquilo fosse real. Aquelas pessoas todas, comendo, passeando, rindo, e... por trás dessa aparente normalidade, todo o peso daquele passado, daquela história negra e densa, como um esgoto correndo por baixo de um rio de águas limpas. Não estou me referindo aos alemães, claro. Acredito que a questão é muito mais abrangente do que pura e simplesmente responsabilizar uma nação. A responsabilidade é da humanidade. A mesma humanidade que estava ali, matando a fome ou a gula naquele lugar repleto de comida, foi capaz de matar de fome, maus tratos, frio, e de todos os tipos de torturas imagináveis, outra parte de si mesma. Outra parte da humanidade. 
A enormidade daquilo me atingiu de uma maneira tão completa que a fome foi embora, mesmo depois de um dia inteiro em jejum. Fui para um dos banheiros do local e chorei compulsivamente durante alguns minutos. Não sabia bem porque estava chorando. Chorava por todas aquelas pessoas mortas, escravizadas, violentadas, torturadas. Chorava pelas pessoas da praça de alimentação, aparentemente alheias à dor. Chorava por mim. 
Até hoje sou capaz de me lembrar com clareza a sensação de ligação que me atropelou: ligação com os que foram vítimas, com os que foram algozes, com os 'inocentes'que nada fizeram para deter a barbárie. Sensação de pertencimento à humanidade, ao mesmo tempo ao seu lado bom e ao seu lado ruim.
Este mês chegou, com atraso, ao Brasil, um filme alemão de 2007, 'An ende kommen touristen' (À espera de turistas), do diretor Robert Thalheim. O tema me interessava, fui logo no dia da pré-estréia: um jovem alemão vai trabalhar no campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, que hoje está transformado em museu. Lá, conhece Krzeminski, um senhor idoso, antigo prisioneiro do campo, que permanece morando ali e faz depoimentos sobre a sua experiência para os visitantes. Desse encontro entre os dois personagens, e sobretudo, entre gerações compostas de valores e realidades tão distantes, se constrói a narrativa.
Esqueçam-se das cenas chocantes de prisioneiros nos campos de concentração: o filme de Thalheim passa ao largo desse estratagema fácil. Pelo contrário, a narrativa é aparentemente 'leve'. Digo aparentemente, porque, na verdade, o fato de escapar das imagens previsíveis da barbárie dá ao filme uma abertura que permite deixar de lado as respostas prontas para que possam aflorar as perguntas. E estas, claro, não são confortáveis.
Ficamos a nos perguntar sobre a legitimidade de transformar um local no qual foram assassinadas um milhão de pessoas em um ponto turístico que recebe essa quantidade de visitantes por ano. Ficamos pensando sobre as questões que ficaram para trás na história, mas que ainda hoje parecem cobrar uma pesada dívida dos jovens alemães. Ficamos curiosos sobre como deve ser, para alguém que padeceu naquele local (e que, teoricamente, deveria querer escapar para algum lugar muito distante), permanecer ali e ver a transformação - do local e a sua própria - em 'entretenimento'; e em como isso passa também a constituir a sua identidade. E, sobretudo, ficamos perturbados com a ausência de sentido histórico que parece assolar as gerações 'neutralizadas' pela mídia para a imensidão dos acontecimentos que tiveram lugar em alguns momentos no tempo. Em uma das passagens do filme, ao final de uma das suas palestras, um estudante pede a Krzeminski que mostre a tatuagem que lhe foi feita no campo. Ele levanta a manga da camisa, o estudante olha a tatuagem e parece decepcionado. 'Ela está apagada', diz para o velho. Ao que este retruca, amargo: 'É, eu não quis retocar'.
Saí do filme, e, conversando sobre ele, escutei da pessoa que foi comigo: 'ah, para mim, o mais interessante foi a opção do antigo prisioneiro em manter a sua dignidade'. Fiquei pensando sobre isso, e, finalmente, cheguei à conclusão de que manter a dignidade nem sempre é uma opção. Às vezes é só o que nos resta face a algumas situações.



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