30.1.12

E a sua pele, quem habita?



O escritor Luiz Fernando Veríssimo tem uma crônica na qual fala sobre um senhor, profissional bem sucedido, pai de família. Tudo corre normalmente na sua vida, até o dia em que ele resolve sair de casa com um... nariz de palhaço. Desses baratinhos, de plástico, uma bolinha vermelha com um óculos e um bigode acoplados. Um dia, esse homem o 'veste' e resolve permanecer com ele. Tudo nele continuava o mesmo. A única mudança era o nariz.
A partir daí, tudo na sua vida se modifica. De dentista respeitado ele vira motivo de chacota e piadas; sua mulher e filha não compreendem a sua atitude e acabam por abandoná-lo; seus clientes, receosos quanto à sua sanidade mental, migram de profissional; e a vida à qual ele estava acostumado parece escorrer lentamente pelos seus dedos.
Ao final da crônica - que, na sua mistura de lucidez e non-sense, lembra vagamente algo escrito por Kafka - ele se questiona: ele é o mesmo, a única diferença é a bolinha de plástico encaixada em seu nariz. Porque as pesoas agem como se ele fosse outro? Afinal, o que importa mais: ele, o homem íntegro, bom profissional, amoroso com a família, ou o seu nariz?
Há algum tempo, tivemos no Brasil um episódio que se assemelha - filosoficamente, ao menos - a esta situação. O cartunista Laerte decidiu começar a se vestir de mulher. Adepto do cross-dressing, Laerte se assume bissexual e tem uma namorada. Mas decidiu que a liberdade, para ele, passava por ter o direito de se vestir de mulher, com direito a brincos, unhas pintadas e bijouterias espalhafatosas. Uma rápida passada pelos comentários a esse respeito na internet mostra que a reação das pessoas em muito se assemelha aquilo descrito por Veríssimo: na ausência da compreensão, o que entra em seu lugar é a negação ou a pura e simples agressão. Passamos pela forma de reagir mais comum que é deixar no ar a pergunta, 'afinal, porque ele se veste assim?', chegando às piores grosserias direcionadas ao cartunista ou tentativas toscas de explicação (alguns defendem que ele passou a apresentar esse comportamento estranho depois que perdeu um filho em um acidente). São comuns frases pretensamente divertidas sobre o quanto as pernas de Laerte são feias ou como ele parece uma mulher com mau gosto para se vestir, até opiniões sucintas que simplesmente o chamam de maluco ou ridículo.
Não é minha intenção entrar na polêmica a respeito dos motivos que fazem com que o cartunista tenha tomado essa decisão, muito menos expressar a minha opinião estética a respeito do resultado visual deste homem que decidiu experimentar-se com outras cores e acessórios. O que me fez lembrar disso tudo e discorrer sobre esse assunto foi ter assistido o filme mais recente de Almodóvar, 'A pele que habito' (La piel que habito, baseado no livro Tarântula, de Thierry Jonquet).
Novamente aqui, temos aquela situação clássica: a arte suscitando o pensamento a respeito de uma questão sobre a qual normalmente não direcionamos muito tempo e energia. Seja porque já se tornou uma questão naturalizada, seja porque em alguns aspectos trate-se de uma questão desestruturante, a verdade é que não dedicamos muito tempo a pensar sobre a importância da 'pele que habitamos', e das suas possibilidades de mudança e manipulação - para além da pura e simples estética.
É certo que todos nós queremos ficar tão bonitos quanto possível. É certo que, muitas vezes, assumimos riscos - que frequentemente se revelam em todo o esplendor dos seus desastrosos resultados - na tentativa de atingirmos um grau de beleza satisfatório que sempre parece estar um passo à frente ou um degrau acima do que conseguimos. E ao assistir ao filme do cineasta espanhol, fiquei com a sensação que, à sua maneira, o que Almodóvar quis foi suscitar um pensamento a respeito deste fenômeno moderno: as possibilidades que temos, contemporâneamente, cada vez de forma mais invasiva, de modificar o nosso aspecto físico. E, em paralelo a isso, o quanto essas mudanças interferem no nosso aspecto psicológico, e mesmo, na maneira como somos percebidos pelo mundo.
Considerada como uma história de Frankenstein moderna, na verdade, o que película de Almodovar faz é perguntar: até que ponto continuamos a ser nós mesmos uma vez que mudamos radicalmente a nossa aparência? Em uma época na qual são possíveis desde plásticas radicais que muitas vezes transformam os pacientes dos ciurgiões em caricaturas de si mesmos, até os transplantes totais de face (por enquanto ainda utilizados com finalidades de recuperar vítimas de acidentes graves, mas alguém aí tem dúvidas de que em breve veremos aplicações estéticas para esta técnica?) a narrativa construída pelo filme questiona, um tanto quanto histriônicamente, em que ponto começamos a deixar de ser nós mesmos e passamos a ser outros.
Seja por um simples nariz, como relata Veríssimo, seja por permitir-se trocar a pele habitual de vestimentas por outras que revelam um gênero diferente do esperado, a questão é a mesma: onde está aquilo que nos confere a identidade? Posso mudar a cor do cabelo, o corte, o formato dos lábios, inflar as bochechas, sumir com as rugas e realizar todos os demais procedimentos considerados 'comuns' pelo reino das cirurgias plásticas e da cosmética. Mas, fica a pergunta: o que, se modificado, faz com que o mundo me perceba como 'outro'?
Quando resolveu fazer a adaptação do romance de Jonquet, Almodóvar declarou que o resultado seria um filme de terror 'sem gritos ou sustos'. Nesse aspecto, o cienasta é mais do que bem sucedido. 'A pele que habito' mostra que o maior terror pode estar bem perto. Pode estar simplesmente ao olharmos para o espelho. Ou para o interior das nossas mentes e desejos.

Em tempo: Confesso que eu, admiradora do trabalho de Almodóvar de longa data, não considerei esse um de seus melhores filmes. Atravessada por um 'que' de pedagogia excessiva, a narrativa apresenta poucos espaços para que o espectador construa a sua própria exegese a respeito daquilo que está sendo mostrado na tela. Enfim, como narrativa cinematográfica, não o incluiria na lista dos grandes filmes do diretor. Mas, se olharmos para os aspectos filosóficos amplos que podemos extrair dele, é um grande filme!



E se?...


... uma vaca caísse do céu?
Um casal de namorados está no meio de um rio, em um barco, passeando. O rapaz canta para a moça. Embora não entendamos nem uma palavra, já que eles são chineses, percebemos que ele expressa o seu amor por ela com a música. Os dois trocam um olhar carinhoso. Subitamente, uma vaca cai em cima do barco. Fade out.
Quem assistiu, reconhece nessa descrição o início de 'Um conto chinês' (Un cuento chino), filme de Sebastian Borentszein. Com bela fotografia, direção segura e excelentes atuações, é uma produção de 2011, assistida com um certo atraso por mim.
A maioria das críticas e sinopses a respeito do filme defende que a sua principal questão seja a respeito da comunicabilidade / incomunicabilidade humanas, de sentimentos que são universais a despeito das diferentes nacionalidades, de vidas que caminham sem direções definidas e, um dia, por um acaso, se cruzam. Tudo isso é verdade. Mas, ainda no impacto de ter acabado de assistir ao filme argentino, me peguei pensando que, no fundo disso tudo, o que Borentszein faz com sua narrativa é nos lançar uma questão sobre o sentido da vida.
Uma frase muito conhecida afirma que uma borboleta batendo as asas em um dos extremos da terra tem o poder de causar uma tempestade do outro lado. A sensação que fiquei, ao longo do tempo em que assistia a história, é que o diretor quis construir uma alegoria desta frase. Para isso, ele encadeia - a partir de uma vaca que despenca do céu - acontecimentos diferentes em vidas diferentes, que seguem, em países diferentes, cada uma ao seu ritmo mas que, um dia, se chocam. Do argentino Roberto, cuja vida segue procedimentos repetitivos que beiram a obsessão e caminha sempre no mesmo ritmo, com sua rotina de todos os dias que acontece de forma imutável, e do chinês Jun, que vai parar em uma país estranho depois de ver a tal vaca caindo do céu na direção de seu barco. Chinesinho dez, rotina zero. Do encontro entre eles se constrói o filme.
Curiosamente, ficamos sabendo, ao final do filme, que a notícia é verdadeira: em uma província chinesa, o piloto de um avião descontrolado se viu obrigado a livrar-se da carga de duas vacas, e uma caiu em cheio sobre um barco pesqueiro, afundando-o. O roteiro partiu dessa notícia - que é apresentada em sua versão original depois da subida dos créditos do filme - para imaginar os seus possíveis desdobramentos.
O argentino Roberto supre a sua vida enfadonha com novidades colecionando recortes de jornal a respeito de acontecimentos inusitados. O dia em que um 'acontecimento' real aparece na sua frente, na forma de um rapaz chinês que 'cai' de um táxi em Buenos Aires, isso tem para ele o impacto de uma vaca caindo na sua cabeça. A partir daí, a sua vida sai dos eixos tão cuidadosamente construídos e preservados por ele e começa a abrir espaço para que ele descubra a resposta para uma questão que o persegue: qual é o sentido da vida?
Seguimos com Roberto nas suas descobertas, e saímos, ao final do filme, com a sensação que, sim, uma vaca caindo do céu na China pode perfeitamente mudar os rumos das nossas vidas... mesmo que elas estejam do outro lado do mundo.