17.10.12

Pode a arte mais do que a morte?


O contexto: 
Um homem está com o seu tempo de vida contado. A morte o procura, na figura de uma mulher, para lhe entregar uma carta que lhe anuncia seus últimos dias. Vai ao teatro onde este homem, um músico, se apresenta junto a uma orquestra, com a intenção de lhe anunciar que o fim se aproxima: o fio que o liga à vida será cortado.


A descrição: 
"A orquestra calou-se. O violoncelista começa a tocar seu solo como se só para isso tivesse nascido. Não sabe que aquela mulher do camarote guarda na sua recém-estreada malinha de mão uma carta de cor violeta de que ele é destinatário, não o sabe, não poderia sabê-lo, e apesar disso toca como se estivesse a despedir-se do mundo, a dizer por fim tudo quanto havia calado, os sonhos truncados, os anseios frustrados, a vida, enfim. Os outros músicos olham-no com assombro, o maestro com surpresa e respeito, o público suspira, estremece, o véu de piedade que nublava o olhar agudo da águia é agora uma lágrima. O solo terminou já, a orquestra, como um grande e lento mar, avançou e submergiu suavemente o canto do violoncelo, absorveu-o, ampliou-o como se quisesse conduzi-lo a um lugar onde a música se sublimasse em silêncio, a sombra de uma vibração que fosse percorrendo a pele como a última e inaudível ressonância de um timbale aflorado por uma borboleta."


Este é Saramago, em 'As intermitências da morte', nos descrevendo como a morte se comoveu ante a delicadeza da arte. É tão lindo, tão verdadeiro, tão emocionante, que não me resta mais nada a dizer. Quis apenas registrar aqui...

5.10.12

Coisas que vamos descobrindo pelo caminho

Gustave Caillebotte - Floor Scrapers,  1876

Foi um amigo que me fez perceber. Como várias das nossas características mais arraigadas, essa morava em mim há tempos e eu nunca tinha me dado conta. Um dia, visitando uma exposição em um museu pequenininho encravado no Marais, o Musée Carnavalet (é um museu que conta a história de Paris, e vale muito uma visita, ainda que seja apenas virtual), passando por uma série de telas expostas, comentei sem pensar: 'adoro as cenas feitas pelos impressionistas da Paris desta época, especialmente as de Caillebotte'. E ele, prontamente: 'você é muito engraçada, com essa sua tendência outsider'. 

Eu: Como assim, outsider?
Ele: Ah, você nunca gosta daquele mais conhecido! Já vi isso um monte de vezes: dos diretores da Nouvelle Vague, não é Godard, nem Chabrol ou mesmo Truffaut, o seu preferido é Louis Malle. Na música clássica, não vem com Chopin, Vivaldi ou Beethoven, você gosta de Albinoni. E agora, com os impressionistas... claro que você não ia se contentar com Monet ou Renoir! Tinha que ser algum pintor como Caillebotte!

Fiquei olhando para ele com cara de besta, meio ofendida até, como se ele estivesse me acusando de ser esnobe. Até que me dei conta que... é verdade! Não por alguma tendência aquele esnobismo tão comum daquele tipo 'gosto-daquela-banda-alternativa-da-última-garagem-de-Seattle-à-esquerda. Olha- só-como-eu-sou-informado-e-moderno!'. Não, nada a ver com isso, mas sim com uma outra característica minha: gosto de ir além daquilo que já está absolutamente estabelecido. 
Então, para mim é assim: ninguém nega o prazer que é ver uma tela de Monet, mas nem por isso ele tem que ser o meu pintor preferido deste período. O mesmo vale para outros tantos exemplos. Às vezes é bom a gente se permitir ir um pouco além do que o já estabelecido nos diz que é bom, seja em termos de gosto por arte e por música, seja na experimentação de coisas novas na culinária, nas roupas, nas amizades. 
Há pouco tempo, escolhida para ser 'paraninfa' de uma turma de alunos formandos, no meu discurso, falei justamente sobre isso: a ousadia de experimentar. E a falta que ela pode nos fazer ao longo do tempo. Vejo hoje - e lamento - as pessoas se permitirem muito pouco. Todo mundo quer ir no 'certo', naquilo já garantido: o emprego que vai te fazer ficar rico (e ser bem sucedido, e famoso, e parecer inteligente...); a roupa que vai te fazer ter a aparência melhor, mais magro, mais elegante, mais bonito e poderoso; a festa que vai 'bombar'; a viagem mais chique. E tenta-se muito pouco, experimenta-se menos ainda, as aberturas para o novo são mínimas, encastelados que ficamos nas nossas certezas ou fórmulas que, tarde demais, percebemos que eram apenas isso: fórmulas. Sem garantias, como tudo na vida.
É claro, todo mundo quer ter uma vida confortável e de sucesso, de preferência fazendo aquilo que gosta, sendo reconhecido como competente, ganhando bem e cercado de amigos. Mas não há caminhos que nos assegurem deste resultado. Mesmo quando fazemos tudo certinho, há sempre o imponderável que, com frequência, vem nos atropelar. E, bagunçado o nosso planejamento inicial, se nos apegamos a ele a ponto de não pensarmos - nem nos permitirmos - as alternativas, o risco de ficarmos perdidos é grande.
Resumindo, e voltando ao ponto de onde comecei, não gosto das fórmulas prontas. Detesto aceitar algo simplesmente porque é o já estabelecido, a unanimidade, aquilo que não se ousa questionar. Gosto sim, de Monet e Renoir. Adoro, na verdade. Mas continuo preferindo Caillebotte. Porque ele é bom mesmo, e também porque sinto um prazer todo especial em saber que ele é a minha escolha pessoal, dentre vários pintores excelentes daquele período. Não foi a mídia que me disse que ele tinha qualidade, não foi o senso comum que definiu que ele é bom. Fui eu, e só tem que funcionar para mim.
Pensei bastante sobre isso desde que aquele amigo me fez prestar atenção nessa minha característica. E hoje, reconheço sinais disso em diversas situações. Dessa coisa meio inquieta que me faz sempre perguntar internamente: 'Tá, isso é mesmo muito bom, mas vamos dar uma olhadinha pro lado e ver quais são as outras possibilidades?'
Semana passada, dando continuidade à minha atividade no atelier de joalheria, ia começar uma peça com um topázio super bem lapidado, quando... olhei pro lado. 
No meio de um monte de tranqueira que estava espalhada em cima da bancada, tinha ele lá, jogado: um pedaço de granito. Sem lapidação, sem brilho, sem transparência. Bruto, áspero, opaco. Praticamente uma pedrinha dessas que chamamos de brita. E eu, olhando prá ela, esqueci que o topázio lindo estava ali, pedindo para ser inserido em um anel, sozinho na bancada. 
Peguei a minha 'britinha', virei, coloquei em cima do dedo. Senti a textura, testei a dureza. Coloquei perto de um pedaço de prata polida, vi o contraste. Apaixonei.
Certamente ainda vou fazer alguma coisa com aquele topázio, mas naquele dia, foi esse anel aí embaixo que saiu...



1.10.12

O que você faria?

"O que você faria se só lhe restasse esse dia? Se o mundo fosse acabar, me diga o que você faria?...", canta Paulinho Moska em 'O último dia'. 
A música se desenvolve elencando uma série de possibilidades para ocupar os últimos momentos da vida de alguém. Escolhas que se impõem: ir a um shopping center, manter os compromissos agendados e a vida sob uma aparente normalidade, ou sair pelado na rua, abrir os portões da delegacia, 'chutar o balde' e fazer tudo o que sempre se quis fazer, mas sempre foi reprimido. 
É uma boa pergunta, essa: o que fazer no último dia? Certamente todos nós iremos vivê-lo, poucos sabendo que estas serão as suas derradeiras horas. Caso soubéssemos, o peso de ter que escolher como aproveitá-las possivelmente nos paralisaria - ou, quem sabe, derrubaria.
Nesta última semana tenho pensado em uma outra questão, de alguma maneira semelhante à essa, que poderia resumir em: "O que você faria se ninguém pudesse te ver?" Conheço duas obras de literatura que parecem trabalhar em cima desta hipótese: o 'Ensaio sobre a cegueira', publicado em 1995 e escrito pelo português José Saramago, e 'O homem invisível', livro de 1897, do inglês H. G. Wells. 
Neste último, um cientista acaba por ser vítima de seus experimentos e se tornar invisível. A partir daí, inicia-se o desenrolar dos acontecimentos. Na tentativa de encontrar um meio de reverter a sua situação, ele vai para uma nova cidade, na qual ninguém o conheça, e chega totalmente envolto em ataduras, como se tivesse sofrido um acidente que o fez ter necessidade de cobrir-se inteiro. O personagem transita pela cidade, sempre, com capa, luvas, óculos, chapéu e ataduras no rosto, na tentativa de manter a ilusão de normalidade. Para além dos componentes de ficção científica característicos da obra de Wells, o mais interessante da história é acompanhar o processo de deterioração moral deste homem. Longe - quando quer - dos olhos reguladores da sociedade, ele sente-se desobrigado de obedecer às normas de convívio social que pautam qualquer comunidade. Daí que, quando lhe apetece, o homem invisível tira todos os elementos que lhe conferem uma forma identificável e, incógnito, sai às ruas, entra nas casas, rouba os moradores, enfim, faz o que quer, segundo as suas próprias regras internas de conduta, que vão se tornando, à medida em que ganha mais confiança, mais e mais elásticas e permissivas.
Se o livro de Wells usa o viés da ficção científica para tratar desse tema, o de Saramago, embora parta de um episódio igualmente inexplicável - a cegueira progressiva da população de uma cidade - adota em seu desenvolvimento um tom de realismo cruel e desesperançado. À medida que a 'epidemia' de cegueira se alastra e as pessoas são colocadas juntas, isoladas em grandes grupos para tentar evitar o contágio, a barbárie cresce. Das regras de higiene às de moral, tudo parece passar por um apagamento. O horror do livro de Saramago é que ele nos revela o quanto a nossa 'normalidade' é construída por elementos impalpáveis, o quanto ela é frágil, o quanto qualquer mínima alteração pode ser suficiente para jogá-la por terra e abrir espaço para a anomia.
Um homem que ninguém vê. Homens que não vêem uns aos outros. As duas histórias não poderiam ser mais diferentes, mas... estranhamente, elas também parecem caminhar para um ponto em comum: a constatação do quanto o olhar do outro nos confere identidade, reconhecimento, limites. Desprovidos deste 'olhar confirmador', parece que nos resta uma espécie de limbo desidentitário, onde tudo que nos parecia tão certo, tão confirmado, de repente se torna tão impalpável.

* Existem versões cinematográficas das duas histórias. Mas, claro, a leitura dos livros é infinitamente mais rica, em especial no caso de Saramago (embora goste muito do filme do Fernando Meirelles). A prosa do escritor português é rica, instigante, sábia, poética. Adoro cinema, mas, mesmo quando já conhecemos o filme, a leitura nos oferece outras perspectivas. São meios diferentes que nos proporcionam prazeres diferentes, e ninguém nunca vai me ouvir dizendo que não vou ler o livro 'porque já assisti ao filme'. :D