26.11.12

Um mundo revelado



O pensador francês Guy Debord, em sua obra mais conhecida, 'A Sociedade do Espetáculo', preconizou - ainda em 1967 - algo que vemos acontecer muito fortemente hoje: a vida em um mundo banalizado pelas imagens. Uma realidade na qual tudo é passível de se tornar 'espetáculo', e esta transformação seria exatamente o que conferiria o caráter de realidade aos acontecimentos.
Debord desenvolveu a sua teoria há quase meio século, quando ainda não tínhamos o acesso fácil à todas as tecnologias de registro de imagem que possuímos hoje: câmeras digitais com resoluções cada vez maiores, celulares que nos permitem fotografar e filmar (e enviar em tempo real para sites, amigos e redes sociais) tudo o que acontece ao nosso redor, possibilidades quase ilimitadas de incorporar o registro de imagens em nosso cotidiano.
No tempo em que o francês escrevia, registrar uma imagem ainda era algo que exigia atravessar algumas etapas: alimentar uma câmera com um filme, registrar as fotos desejadas, rebobinar o filme, levar para revelar, esperar alguns dias até poder conferir o resultado. Para a nossa percepção moderna, acostumada a verificar a imagem imediatamente após o 'click', parece impensável esperar tanto para saber o resultado imagético daquele apertar de botão de algum tempo atrás.
E quando esse resultado nem mesmo é conferido? Qual seria o sentido de fazer milhares de fotos e nunca revelar nenhuma? Qual a paixão necessária para encher rolos e rolos de filmes fotográficos ao redor de vários países do mundo e... nunca - sim, eu disse nunca - colocar nenhum deles para ser copiado em papel?
Então, essa é a hora da historinha. Vamos lá:
Era uma vez uma mulher. 
Poderíamos descrever essa mulher rapidamente como uma americana, que nasceu em NY na década de 20, morou na França algum tempo e quando retornou aos Estados Unidos passou o resto da vida trabalhando como babá.
Pronto, contamos a história de uma vida, a história de uma mulher. Mas Vivian Maier foi muito mais que uma mulher que gostava de crianças e escolheu trabalhar cuidando delas. Ela foi uma mulher dotada de um olhar. De uma sensibilidade apurada. De um senso estético raro.
Maier passou boa parte da sua vida fotografando. Começou pela sua cidade, depois resolveu tirar uma licença de seis meses do trabalho e saiu pelo mundo, olhando e registrando imagens.
Depois de sua morte, deixou dívidas. Por causa delas, alguns de seus bens foram à leilão. Neste leilão, os filmes foram comprados por um pesquisador que procurava por imagens que lhe ajudassem em seu trabalho sobre a história de um dos bairros de Chicago. 
Isso foi em 2007. A partir daí, Vivian Maier passou a existir para o mundo.
As suas fotos são criativas, com belos enquadramentos, ângulos fortes e temas variados, que gravitavam em torno de uma questão central: cidades. Da arquitetura angulosa aos sem-teto nas ruas, passando por casais amorosos e crianças em gestos espontâneos, a fotógrafa registrou cenas diversas.
É através destas cenas que podemos, hoje, nos apaixonarmos pelo que ela viu, pelo seu olhar que criou estas cenas, pela sua percepção que filtrou e selecionou estas paisagens urbanas e humanas, 'enfiando-as' em pequenos rolos de filmes para que, tantos anos depois, o seu mundo e o seu olhar nos fossem revelados. 
Rolos de filmes que poderiam ter ido parar no lixo, hoje são qual minúsculas 'cápsulas do tempo' que nos chegam depois de quase meio século e, uma vez abertas, nos emocionam e nos suscitam questões, como as melhores obras de arte sempre têm o poder de fazer.










Mais sobre a obra de Vivian Maier no site da revista Obvious e no blog criado para a divulgação das suas fotos pelo pesquisador que as descobriu.

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Meses depois deste post, me deparo com outra reportagem sobre a fotógrafa. Desta vez, o tema são os auto retratos que ela fez, ao longo de diversas épocas e em várias situações. Inseri este exemplo aí da cima e não resisti em acrescentar a reportagem aqui no blog. Se tiver interesse, venha aqui

21.11.12

MMA emocional

Não entendo nada de lutas. Aliás, acho uma maneira absolutamente horrorosa de passar o tempo ficar olhando dois sujeitos se engalfinhando na tela da TV, como parece ser do gosto de tanta gente nestes últimos tempos. Daí o meu espanto, quando, conversando com um amigo dia desses, ele me disse: "Na verdade, o grande segredo dessas lutas é saber apanhar. Vence o combate quem permanece mais 'inteiro' até o final, e aí consegue se sobrepor ao adversário. É uma espécie de inteligência".
Na hora não dei muita importância, confesso que o tema me interessa muito pouco. Mas, algum tempo depois, lembrei disso, ao assistir o filme "E agora, para onde vamos?", da diretora Nadine Labaki. A história se passa em uma pequena vila no interior do Líbano, onde convivem, em relativa paz, católicos e muçulmanos. O lugarejo é bem isolado e, para assistir televisão, os moradores têm que levar o aparelho (o único da cidade) para o alto de uma montanha, onde a recepção do sinal se dá. Na primeira noite em que o fazem, porém, uma notícia é veiculada: um novo conflito acaba de ser detonado por motivos religiosos no país. As mulheres, com a sua habitual - e às vezes irritante - mania de prestar atenção em várias coisas ao mesmo tempo, são as primeiras a perceber a novidade que está se desenhando na tela: o país está prestes a mergulhar em uma nova contenda, e, em sua esteira, mais mortes desprovidas de sentido, mais viúvas, mães e órfãos se questionando porque estão sem aqueles que amam. Mais perdas. E, cansadas de todo esse panorama que conhecem tão bem, dão um jeito de distrair a atenção de seus maridos e filhos para que estes não notem o que começa a acontecer no resto do país. Pois é, é a tal da sabedoria que só tem quem está cansado de apanhar...
O filme prossegue se equilibrando em cima deste muro, que separa não apenas diferentes religiões, mas também homens e mulheres, os que sabem e os que não sabem do que está se passa no restante do Líbano.
E foi esse aspecto da história que me chamou a atenção: embora não sejam elas as principais protagonistas desta contenda, são as mulheres que mais sofrem. Por uma simples razão: são elas que ficam. Os homens morrem. E elas se tornam jovens viúvas vestidas de preto ou mães idosas que sofrem a ausência dos filhos. 
E ficar, convenhamos, é muito mais difícil que partir. Quem fica, tem que lidar: com a perda, com as questões, com o remorso, com a dor. Tem que lidar com a própria vida que continua. 
E é assim que, cansadas dessa rotina que lhes rouba precocemente maridos e filhos, as mulheres da aldeia se unem, independente de suas partições religiosas, para evitar maiores perdas. 
As idéias que elas lançam mão para atingir seu objetivo são extremamente originais, e através das suas estratégias, se constrói um filme delicado, divertido, denso, triste e comovente. Um filme de dor, mas que a trata com sabedoria e leveza. Acima de tudo, um filme que nos lembra que, para além de todas as diferenças, afinal (e no final), vamos todos para o mesmo lugar.