4.8.11

A abóbora de Woody


Ok, eu confesso: Woody Allen não é, atualmente, um dos meus diretores preferidos. Ok, eu também confesso: sou chata, e esse 'chata', para ser honesta, deveria ser escrito com letras maiúsculas porque sou chata MESMO, especialmente quando estou tratando de coisas que gosto muito.
Já gostei muito de Allen, achando-o mesmo genial (principalmente na fase de filmes como 'A rosa púrpura do Cairo', 'A era do rádio', Hannah e sua irmãs'), cidades são um tema para o qual estou sempre atenta, já morei em Paris, e amo cinema. Ou seja, aguardei o lançamento de 'Midnight in Paris' com muitas expectativas. Como demorei muito para assistir ao filme, tive oportunidade de, antes de vê-lo, ouvir as opiniões de muita gente a respeito dele. Pessoas cujas opiniões respeito e levo sempre em consideração gostaram muito do filme, tratando-o mesmo como uma reedição das melhores obras de Allen, ou, em alguns casos, considerando-o ainda superior.
Daí, caí na armadilha. Pensei: 'é Allen, é Paris, todo mundo gostou, não tem possibilidade de que eu não goste!' E, com esse espírito, fui, depois de semanas em cartaz, assistir ao filme de Woody. E, novamente, como tem acontecido com os últimos filmes do diretor, me decepcionei.
Claro que o filme é poético, bem mais do que os últimos do diretor. A história, um conto de fadas pós-moderno, não traz nada de muito inovador: Allen trabalha com a sensação que sempre nos acomete de que a vida seria melhor em outra época, em outro lugar, sob outras condições. Assim, coloca em cena um protagonista que, todas as noites, meia-noite em ponto, entra em um carro e é transportado para a Paris dos anos vinte, justamente naquele período que parece, ao nosso olhar contemporâneo, o mais efervescente da história da cidade.
Na tela desfilam - face aos nossos olhos e os do personagem principal - Picasso, Gauguin, Gertrude Stein, Buñuel, Cole Porter, Zelda e Scott Fitzgerald, e outros nomes míticos que habitaram a cidade durante este período de ebulição cultural. Foi justamente o convívio com essa mistura de pessoas interessantes, que pareciam se divertir incessantemente, que fez com que Hemingway criasse aquela que se tornou uma das frases símbolo da cidade: 'Paris é uma festa!' E Gil Pender, o protagonista da história (interpretado pelo fraquíssimo Owen Wilson), como uma cinderela ao contrário, toda meia-noite é transportado para essa festa.
A história é leve, e nesse sentido, é impossível não reconhecer que Allen volta a conduzir o filme com uma 'mão' despretensiosa que lhe fez falta nos últimos trabalhos, nos quais o diretor parecia se levar à sério demais.
Provavelmente, se eu tivesse ido assistir a esse mesmo filme sem saber quem é o diretor e sem ler os empolgados comentários de que o filme é 'uma homenagem a Paris', ou de que representa uma 'declaração de amor à cidade', eu até gostaria dele, mesmo sem achar nada de excepcional. O que me incomodou, na verdade, é que não consegui enxergar nada disso na película. A Paris de Allen não vai além dos clichês, assim como os personagens que desfilam na tela não têm profundidade. Assim, por mais lindas que sejam as imagens da cidade que abrem o filme, elas são apenas isso: belas cenas. Sem profundidade, reprisando uma Paris que é a meca dos turistas, que já cansamos de ver nos cartões postais e que em nada acrescentaram à imagem da cidade.
A sensação que fiquei, na verdade, é que Allen faz, em seu filme, um malabarismo com clichês: das belas imagens de Paris que já foram exaustivamente veiculadas por diversos meios, passamos para personagens que incomodam pela maneira rasa com que foram construídos. Os pintores, músicos, escritores que desfilam ante os olhos do espectador precisam ser facilmente reconhecíveis. Nesse sentido, são tratados como pouco mais que caricaturas de si próprios (os diálogos com os surrealistas, especialmente, tiveram o poder de me irritar).
Para mim, a carruagem do conto de fadas de Allen mais se pareceu à uma abóbora. Saí do filme e comecei a reler o famoso livro de Hemingway, 'Paris é uma festa'. Se é para travar contato com todo o ambiente cultural de Paris dos anos vinte, prefiro ficar com o original.

3.8.11

Os livros do Tom



Fui assistir ao documentário sobre os Novos Baianos, "Filhos de João". Permaneci ali sentada durante uma hora e meia e saí com uma sensação que tinham se passado dez minutos.
A construção do filme é leve, delicada, com um bom equilíbrio entre cenas de arquivo e depoimentos atuais, que se somam para construir um panorama - mais do que de um período da música brasileira - de um momento no qual parecia possível sonhar com uma nova sociedade.
Não vivi o auge do grupo. Mal tinha nascido quando Moraes, Pepeu, Paulinho, Baby e todos os outros pintavam de verde e amarelo o panorama musical brasileiro, antes tão influenciado pelo que vinha de fora do país. Para mim, então, o documentário teve, mais do que o sentido de memória, o gosto da descoberta. Descoberta que aquele grupo de onze pessoas era muito mais do que um grupo musical. Era sim, uma comunidade, uma tentativa de construção outra, de sonhar com a possibilidade de outros devires para o social.
Mas, na verdade, não quis escrever para falar do documentário, embora ele valesse um post só para ele. O que me encantou mesmo foram os livros do Tom. De longe o mais articulado, o mais inteligente e o mais lúcido de todo o grupo, Tom Zé dá, em seu depoimento, um show à parte. De conhecimento histórico, sociológico e filosófico, de hábil manejo das palavras, de visão que vai muito à frente do seu próprio tempo histórico. Aos desavisados, pode parecer por vezes que o músico 'viaja', devaneia, mas, se prestarmos atenção, percebemos que tudo na sua fala se amarra, tudo se articula, tudo está embasado.
Eu, encantada com a fala do Tom, comecei a prestar atenção na estante às suas costas. Sempre fui adepta de conhecer uma pessoa pelos seus livros. Olhar a estante de alguém pode ser tão revelador quanto ler o seu diário! (se é que ainda há aqueles que os escrevem...). Ali, nas prateleiras, estão preferências (prosa ou poesia? romances, suspenses, biografias, relatos históricos?), inclinações (literatura nacional ou estrangeira? ficção ou realidade?), obsessões (tudo daquele autor que amamos!). Dá prá saber muita coisa a respeito de alguém se observarmos seus livros com atenção...
Na estante do Tom se misturavam Lewis Carroll com toda a coleção da 'História da vida privada'. Livros de filosofia ao songbook de Cole Porter. Livros com cara de novos e outros - a maioria - com cara de livros 'de verdade': maltratados, puídos, lombadas manuseadas e descoloridas, algumas já se soltando. Como um livro deve ser ao cumprir sua função: lido e manipulado. Livros não são para serem mantidos virgens nas estantes. Um livro feliz é aquele que foi lido em diversas fases da vida por diversas pessoas, participou de múltiplas histórias, ajudou a definir personalidades.
Olhando a estante do Tom, fiquei pensando que não é, absolutamente, por acaso, que ele permanece sendo o mais articulado de todo aquele genial grupo.