5.8.13

Encontros urbanos





Em cada cidade aconteceu de um jeito. Com alguns milhares de pessoas, com muitos milhares de pessoas. Com todo mundo vestido de branco, com cores das mais variadas preenchendo as ruas. Com caminhadas pacíficas, com gestos de violência que traduzem toda uma camada da população que cansou de não ser vista - e nem considerada - pela cidade que habita. Cada manifestação que vimos, ao vivo ou pela televisão e - em especial nesses tempos interessantes de mídia ninja - pela internet, teve uma cara toda sua, um jeito todo próprio.

Agora, já passado algum tempo do início das manifestações, vamos conseguindo ver com mais clareza os seus desdobramentos. Temos aqueles mais explícitos, que percebemos logo de cara: a passividade que caracterizava boa parte dos brasileiros deu lugar a um certo 'estado de alerta' no qual as pessoas estão pouquíssimo dispostas a deixar passar em branco situações nas quais se considerem desrespeitadas. Isso diz respeito às decisões políticas que definem os rumos de cada espaço urbano, mas se derrama por diversas áreas. Há algumas semanas atrás, em um supermercado de uma grande rede em minha cidade famoso pelo seu mau atendimento, os consumidores, cansados de esperar nas longas filas e ver mais da metade dos caixas fechados, iniciaram um 'levante', com reclamações coletivas, e os administradores rapidamente abriram mais alguns caixas para atendimento.

Mas, para além destes efeitos mais visíveis, acredito que há outros que vamos percebendo aos poucos. Algo que me chamou muito a atenção, nas manifestações das quais participei, é que passamos à pé por regiões da cidade nas quais costumamos ir apenas de carro ou ônibus. 

Especificamente em Vitória, há uma das pontes que promovem a ligação com o continente, na qual só é possível passar de forma motorizada e pagando pedágio nos dois sentidos. E essa ponte foi um dos principais alvos das pessoas em todas as manifestações - sendo uma das demandas principais do movimento em terras capixabas justamente a extinção do pedágio. 

A 'terceira ponte' - como ela é chamada - é um caso curioso: onipresente na paisagem de boa parte da cidade, ela é um paradoxo de presença versus inacessibilidade, já que as únicas oportunidades de atravessá-la à pé são competições de corrida que a incorporam no trajeto. Para mim foi indescritível a sensação de, junto à massa de pessoas, cruzar seu vão gigantesco caminhando, prestando atenção nos detalhes, sentindo o vento e vendo a paisagem, interagindo com outros passantes, desviando dos skates, bicicletas e patins. Eu, e todas as pessoas que a atravessamos, fomos tomados de um sentimento de estarmos nos apropriando de um pedaço da cidade que nos era negado até então. Pode parecer banal, mas posso garantir: foi emocionante.

Houve outros exemplos: avenidas nas quais passamos rotineiramente de carro e que tivemos a chance de atravessar à pé, prédios públicos nos quais nunca havíamos entrado e que foram ocupados durante dias, praças até então bucólicas que viraram campos de batalha de pedras, balas de borracha e gás lacrimogênio. Mas, acredito que para Vitória, o exemplo mais marcante tenha sido realmente o da nossa ponte. Símbolo maior da nossa conexão com o mundo, ela era como aquele amigo virtual que parecemos conhecer tão bem via computador e que um dia temos a chance de encontrar pessoalmente. E é aí que vamos ver se gostamos realmente dele ou não.

Cem mil capixabas atravessaram a ponte naquela que foi a nossa maior manifestação. Cem mil pessoas foram a um local da cidade no qual nunca haviam estado - ao menos, não daquela maneira. E isso não é pouco. Não é pouco numericamente, não é pouco simbolicamente. Não é pouco para reacender este sentimento que corremos o risco de ir perdendo aos poucos nos dias atuais: aquele que reafirma que a cidade é NOSSA, que deve ter seus rumos definidos de acordo com as necessidades das pessoas que nela vivem, e não do capital imobiliário, do fluxo do tráfego, ou dos interesses das grandes empresas.

Tenho percebido, nestas últimas semanas, sinais deste outro despertar: uma consciência maior a respeito da cidade. Vejo isso com muita esperança de que não seja apenas algo pontual que seja esquecido com o passar do tempo. Gostaria mesmo, que as manifestações, para além das suas consequências políticas, apresentassem essa excelente derivação: a de uma apropriação do espaço urbano como algo que faz parte das nossas vidas. E que, junto com isso, venha também a valorização daquele que - não importa a época - continua sendo o maior sentido da existência de uma cidade: o encontro. 

Alguns pequenos indícios me mostram que talvez possa estar acontecendo isso que eu, internamente, denomino como uma retomada da cidade: um movimento de pessoas que habitam o mesmo espaço e que, de uma hora para outra, se descobrem cidadãos. São mínimas ações que me fazem ter essa esperança: moradores de alguns bairros que começam a apresentar iniciativas de reivindicações de maneira independente das antigas associações comunitárias tão vinculadas aos políticos; questionamentos à decisões de mudanças na cidade que anteriormente nos eram empurradas goela abaixo sem preocupações maiores com a sua aprovação ou não pela população; propostas de ações coletivas de ocupação de espaços públicos. Tenho muita, muita vontade que as nossas cidades passem a ser locais que reúnam cada vez mais ações coletivas, ações que promovam o encontro, não apenas com o mesmo, aquele que vemos sempre nos cinemas, bares e restaurantes, mas entre os diferentes.

Este final de semana participei de uma destas ações: pessoas que se reuniram em uma praça para... desenhar. Algo que poderíamos fazer com mais conforto em nossas casas, algo que poderia ser mais conveniente se realizado como atividade solitária em horário e local à escolha de cada um, mas, paralelamente, algo que fez com que pessoas se conhecessem, pessoas interagissem, pessoas aprendessem umas com as outras. Algo que fez com que os rapazes responsáveis pela limpeza da praça se sentissem à vontade para parar ao lado de um dos desenhistas e demonstrar interesse, perguntar, interagir com um homem que, em outra situação, eles talvez não sentissem que tinham espaço para tal.

São mínimas as atitudes, são mínimos os indícios. Mas, ontem, um gari que talvez nunca tenha entrado em um espaço de exposições, voltou para casa com alguma informação sobre arte. O desenhista saiu dali com a sensação de que despertou o interesse e respondeu as dúvidas de alguém sobre o seu trabalho. E eu registrei um momento de interação peculiar entre dois cidadãos da mesma cidade que, embora vivam próximos, talvez sempre tenham estado separados, cada um vivendo na 'sua' Vitória. Estes dois homens encontraram, naquele situação, uma brecha para o encontro, e transformaram as suas cidades - ainda que por breves momentos - em uma só.

Não resisti ao lindo dia de sol que me proporcionou boas imagens e coloquei mais algumas fotos do domingo.Um domingo de verão em pleno inverno, um domingo de desenhos, um domingo de encontros.



















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