28.2.13

Cidades de pedra, cidades de carne


Há algum tempo atrás, uma conhecida marca de cosméticos apresentava uma publicidade na qual uma modelo - devidamente munida de todos os recursos que aquela empresa podia oferecer para melhorar a sua aparência - saía às ruas e, à medida em que a moça passava pelos lugares, tudo ia se tornando mais 'bonito'. O cachorro que antes tinha uma carinha suja e despenteada parecia que tinha acabado de sair de um pet shop. O sujeito mal vestido ficava elegante. E a cidade... perdia seus graffitis e ganhava muros brancos!

O conceito que embasa a concepção deste anúncio sempre me intrigou: afinal, a cidade bonita é aquela que tem muros brancos? 

Podemos, de início, achar que é uma bobagem: 'ah, deixa de ser chata, é só uma propaganda!...' O problema é que - e podemos comprovar isso em diversas situações -, representações são capazes de criar realidade. Assim, se vejo, continuamente, uma situação sendo apresentada pela mídia como normal, bonita, adequada, desejável, acabo considerando-a assim. 

O contrário também vale: quantos de nós passamos a deixar de achar 'normal', por exemplo, uma pessoa acender um cigarro ao nosso lado no restaurante ou avião? Nada, objetivamente, na cena modificou-se: os ambientes são basicamente os mesmos, os cigarros têm o mesmo odor, as pessoas continuam fumando como sempre o fizeram. Mas... de repente, já não é mais normal o sujeito que sentou ao meu lado no avião se sentir à vontade para fumar a viagem inteira. O que causou esta mudança? Dentre outras coisas (as leis de proibição, etc...), uma das mais importantes foi a forma representação que passou a ser feita sobre os fumantes, em especial, sobre os que fumam em locais públicos e fechados. De uma hora para outra, essas pessoas perderam o status de 'charmosas' e passaram a portar o de 'sem noção'.

Por reconhecer essa relação entre representação e constituição da realidade, costumo prestar muita atenção nas maneiras através das quais as representações a respeito de determinadas situações são constituídas. Desenvolvi toda a minha tese de doutorado a respeito disso: como o cinema vê a cidade, como a cidade incorpora este olhar nas suas formas de se comportar em relação às mais diversas situações. E, sobretudo, presto muita atenção nas maneiras através das quais as mídias tratam determinados assuntos. 

A publicidade, como no exemplo através do qual abri este texto, é uma das maneiras mais poderosas de criar realidade. Afinal, o sujeito está lá, despreocupado (leia-se 'desprotegido'), jogado no sofá, procurando um pouco de entretenimento na televisão, e é 'bombardeado' por padrões de normalidade, de consumo, de desejos. Padrões estes que, após algum tempo sendo submetido a eles, é necessário ter um espírito crítico muito apurado para não sucumbir ao que estão apregoando. E o que é vendido por uma publicidade vai muito além do produto que ela busca diretamente promover. Ali são construídos parâmetros: do que é aceitável e, sobretudo, do que é desejável. Talvez por causa disso sempre tenha me irritado com a tal da propaganda da empresa de cosméticos: porque não desejo uma cidade composta por muros brancos!

Quero uma cidade colorida. Quero uma cidade na qual todos tenham a possibilidade de se manifestar. Quero uma cidade que 'fale'. Ainda que seja para dizer coisas sobre as quais discordo. Quero uma cidade que seja feita de carne, e não apenas de pedra! E 'carne', neste caso, é a nossa carne, é a carne, e o sangue, e o ritmo, e a alma, de quem transita pelas suas avenidas, divide o seu chão, compartilha das suas maneiras de se expressar, seja na fala, seja nas outras maneiras, das quais a arte é uma das mais poderosas.

Ontem aconteceram na minha cidade duas coisas que me chamaram muito a atenção: a primeira delas é que a nova administração municipal resolveu 'limpar' os pontos de ônibus. Até aí, tudo bem. Quando vi, no jornal à noite, a manchete que anunciava a notícia, até pensei: 'ah, que ótimo, como todo esse pó de minério e poeira do trânsito eles devem andar merecendo uma limpeza mesmo!...' 

Mas, engano meu: a tal 'limpeza' era tirar dos pontos os graffitis que foram feitos ali por artistas urbanos. Pior ainda: alguns destes trabalhos eram resultado de um edital de incentivo cultural feito pela própria prefeitura! ('ah, mas foi na gestão anterior, isso não deve ser considerado!...').

Bom, isso, por si, já me deixou indignada. Mais que isso, me deixou triste. Mostra, dentre outras coisas, um pensamento sobre o espaço público que parece andar na contramão de tudo o que se discute atualmente na gestão das cidades. Então, parece que é assim: tira da rua tudo o que os gestores da nova administração não acham que deva estar lá. O viciado que está na esquina? Tira! (tira, mas não oferece tratamento digno). O morador de rua? Tira! (leva para um albergue, ou pior, paga o transporte para fora da cidade, mas igualmente não lhe permite condições adequadas para que saia das ruas e passe a ter uma moradia decente). A arte? 'Ah, eu não gostei desses graffitis, apaga isso aí...'. 

E a cidade vai ficando calada, chata, excludente. Cidade de poucos, cidade de ninguém. Cidade na qual eu não me vejo, e não vejo a maioria das pessoas com as quais eu convivo. Cidade que vai, aos poucos, deixando de ser CIDADE, essa, com letra maiúscula, que tem por objetivo oferecer o palco para a expressão da diversidade, das múltiplas vozes, cores e formas. Cidade que vai se transformando na Vitória (desculpem o trocadilho, mas foi mais forte que eu... :) ) da chatice, da burrice, da mesmice, do raciocínio totalitarista.

Bom, mas eu disse que foram duas as coisas que chamaram a minha atenção: a primeira foi essa atitude da administração municipal. A segunda foi a maneira como os veículos de comunicação ESCOLHERAM (e aqui é importante frisar: é uma escolha. Sempre é.) apresentar a notícia. Como 'limpeza' das ruas. Como assepsia da cidade. A sensação é a de que copiaram o release enviado pela prefeitura e leram no ar. E, me desculpem os meus - muitos(!) - amigos jornalistas: isso não é jornalismo. Isso é servir de veículo para informações que este ou aquele interesse (seja empresarial, seja de uma administração municipal) desejam que seja repassada. Isso é empobrecer - e envergonhar - uma profissão que deveria ser atravessada antes de tudo por uma dose cavalar de senso crítico, uma profissão que já teve um papel tão decisivo nos rumos passados do país.

No momento em que o raciocínio vigente não consegue mais enxergar a realidade de um ponto de vista crítico, confesso, entristecida, que eu começo a perder a esperança...


Um comentário:

  1. Eliana, long time no see.
    Deveria continuar distante mas seu texto e seu pensamento são claros como água limpa.
    Perder a esperança, a última praga da caixa, pode ser também reconstruir uma outra lógica para as cidades. Reais ou imaginárias, as cidades não podem perder sua alma, que é sua gente.
    E você está inscrita nessa batalha.
    Coragem, menina Eliana.

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