16.5.11

Dois pode ser um?


O quadro a nossa frente permanece escuro por um longo tempo. Aos poucos, os acorde iniciais de "You and whose army", do Radiohead, convidam o espectador: 'come on, come on...' Enquanto Thom Yorke canta, a tela clareia aos poucos e vemos uma cena na qual vários meninos têm as cabeças raspadas. A infância está se encerrando prematuramente pelas mãos de guerrilheiros. Enquanto os fios caem no chão, um deles nos olha dolorosamente - e merecia um prêmio de atuação por essa única cena - e vem o primeiro baque, na forma da frase: "A infância é uma faca cravada na garganta".
Não há como se enganar: estamos frente ao início de um grande filme. E o canadense "Incêndios", do diretor Denis Villeneuve, não nos decepciona.
É, do início ao final, do roteiro à trilha sonora, da direção à fotografia, um GRANDE filme, assim mesmo, com maiúsculas. Daqueles que, quando saímos, não conseguimos nem conversar a respeito. A mente foi violentada, a alma foi sacudida, e precisamos de um tempo para entender onde os cacos desta implosão nos atingiram e se cravaram, arrancando sangue e reflexões.
"Incêndios" é um filme que trabalha a vida em vários níveis: é um filme sobre as guerras religiosas que sacodem o Oriente Médio, em um panorama cujo sentido ético e político nos escapa. É uma história sobre um drama familiar e pessoal que separa e une uma mãe e seus filhos. Mostra o amor de dois jovens, interrompido por razões que escapam àquelas do coração. Fala de vidas que se perdem pela insignificância de um gesto errado e daquelas ocasiões nas quais um mínimo olhar pode ser a diferença entre ser subitamente morto ou permanecer vivo. Ao fim de tudo, é um filme sobre a dificuldade e a liberdade de conseguir perdoar. No limite, ele se pergunta a respeito de quantos 'incêndios' uma única vida é capaz de conter e superar. É possível se reerguer depois de ver tudo queimado ao seu redor?
O roteiro escapa à tentação de utilizar uma estratégia bem comum no cinema, que é a de construir um elo entre o filme e o espectador através da entrega de pontos essenciais a quem assiste - construindo aquilo que Arlindo Machado chama de 'olhar privilegiado', ou seja, uma compreensão do filme que apenas nós, que o estamos vendo, possuímos. Este 'privilégio' não existe. Nada nos é revelado de antemão. Vamos descobrindo, ao mesmo tempo em que os personagens, todas as filigranas com as quais Villeneuve constrói a sua trama. Isso permite - obriga, na verdade -, a que nos maravilhemos e horrorizemos junto com os gêmeos Marwan e sua mãe, os protagonistas do filme, à medida em que todo o panorama da película se constitui. E baques da história nos atingem com a mesma força que aos personagens, assim como nos transtornam as questões que o filme lança em nossa direção, talvez a parte que mais permaneça conosco ao sairmos da sala de cinema: afinal, qual o sentido de tudo isso? Para que servem, onde começam e acabam, o amor, o ódio, o perdão, os laços que unem e separam as pessoas? Quais são as fronteiras entre esses sentimentos tão viscerais e qual o preço estamos dispostos a pagar por eles? Ou, como se pergunta um dos gêmeos ao final, 'dois pode ser um'?

5 comentários:

  1. Belíssimo filme, texto perfeito!!

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  2. Me senti convidada para assistir. Belo texto!

    ;)

    Lu

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  3. Obrigada pelo elogio, Lu. É realmente um filme que merece ser visto. Beijos!:)

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  4. Mto bem dito Eliana, o filme ficou na cabeça e sem ter com quem conversar a respeito ele foi como um incendio que vai se apangando. Vc acendeu o fogo de novo!
    Na minha sessão, quando o filme acabou, um silencio absoluto, os créditos foram aparecendo e a plateia permanecia sentada e muda, que filme!

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  5. Fico feliz de saber que acendi de novo esse 'incêndio' interno Daniel! Esse é um fogo que merece queimar. Longe de destruir, ele nos lembra que estamos vivos e que o mundo arde... Beijos, obrigada pelas tuas palavras gentis!

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