19.2.13

Diferentes seduções


“Vem cá, dá tua mão, vamos dar um passeio. Vai ser legal, vamos passar por lugares incríveis e conhecer um monte de gente bacana.”
... ou:
“Olha, eu vou por aqui, se você quiser vir junto a decisão é sua. Não garanto nada...”
... ou ainda:
“Ah, decide! Vem ou não, tanto faz! Eu tou indo! Não estou fazendo isso por sua causa. Não vou parar prá ficar te esperando.”
... e tem também:
“Esse caminho não é grande coisa... Nem sei porque você está vindo junto comigo. Se quiser, fica por aí mesmo... Mas, se vier, fica sabendo logo que a qualquer momento eu posso resolver pegar um desvio.”

É assim para mim, a cada vez que começo um livro. Cada autor me convida de um jeito e me leva para um lugar diferente. Uns são delicados, persuasivos, sedutores. Querem que o leitor os siga, preocupam-se em cativá-lo e mantê-lo atado à narrativa. Outros parecem não estar nem aí se vamos segui-los ou não, se vamos gostar dos personagens e mergulhar na história. Há aqueles que parecem escrever para si, como se estivessem sozinhos consigo mesmos. Com estes, o leitor se sente quase um intruso, olhando - sem ser convidado - para cenas absolutamente íntimas, constrangedoras, vergonhosas mesmo. E existem os que apresentam sua obra como uma ilusão, lembrando aquelas matrioskas, bonecas russas que se abrem e, de dentro, sai outra boneca que também se abre, e assim vamos em descobertas sucessivas.

E é curioso como, depois de alguns contatos com o mesmo escritor, já sabemos onde ele pode nos levar, que cordas internas serão acionadas em cada um de nós com a sua escrita, e quais sentimentos serão mobilizados pelas suas palavras. Assim, se começo um livro de Calvino, por exemplo, sei que vou ter, de início, um sentimento de que não estou compreendendo tudo o que ele quer me dizer. Aos poucos, vou entrando na narrativa e começo a perceber que aquela forma de se expressar aparentemente simples é, na verdade, de uma sofisticação absoluta, cheia de referências, de significados apenas sugeridos, de entrelaçamentos que se revelam pouco a pouco, e apenas se prestarmos muita atenção.

Saramago desperta uma capacidade de me sentir ligada com o Outro que sempre me pega de surpresa: você está lá, lendo o livro calmamente, sem grandes pretensões e, de repente, já se colocou no lugar não apenas de UM personagem - como é relativamente comum - mas de TODOS os personagens que o autor escala para contar as suas histórias. Você é vários! Essa é uma das sensações mais curiosas que se pode ter, e, para mim, a medida da genialidade do escritor: você é o homem que ficou cego e o que se aproveitou disso para lhe roubar o automóvel; Jesus Cristo, Judas e Maria Madalena; o sujeito que vai morrer, e a própria morte, que se apaixona e desiste de levá-lo. Para mim, o escritor português é uma experiência singular de sermos divididos em muitos, e isso se confirma a cada livro que leio dele.

E é assim com vários autores pelos quais nos ‘apaixonamos’ e resolvemos seguir: já sabemos mais ou menos o que vamos sentir quando começamos a ler algum de seus livros. 

Essas reflexões me ocorreram porque terminei mais um dos livros de um autor que me intriga: o norte americano John Irving. É engraçado o que acontece quando começo a ler um livro dele: sempre, inevitavelmente, eu acho os personagens centrais chatos, inverossímeis, fantasiosos. É uma ‘antipatia à primeira vista’, que já percebi acontecer vezes suficientes para entender que, ao final da narrativa, ela será substituída por uma gigantesca empatia. E, tenho que confessar, só insisti na leitura de seus livros por indicação de outro leitor, voraz como eu, cujos critérios de julgamento eram de minha confiança, e que me aconselhou: 'continua que o livro é bom'. Caso contrário, acho que teria abandonado o primeiro livro que tentei dele pela metade (Era "O mundo segundo Garp", eu acho).

Irving é desses autores que vão tirando histórias de dentro da história: você começa em um situação que parece minúscula, despretensiosa, e quando vê, já está nas mãos de personagens que fazem as coisas mais inusitadas (no livro que acabei de ler um dos personagens assassinou a amante do pai com uma frigideira... achando que ela fosse um urso!). O pior: por mais fantasiosa e ridícula que possa soar a situação descrita, o autor tem a capacidade impressionante de dar credibilidade à ela.

Enfim, é um escritor que eu adoro e detesto. Adoro porque ele sempre me surpreende, sempre me tira o chão firme no qual eu pensava pisar, sempre me apresenta situações absurdas e me faz sentir que elas poderiam perfeitamente ter acontecido. E detesto, porque sempre, SEMPRE, que termino de ler os seus livros, estou absurdamente comovida por aqueles personagens que eram tão chatos, tão sem empatia, tão sem graça. Enfim, terminei “A última noite perto do rio” como finalizei todos os outros livros que li de Irving: com meus olhos cheios d’água!



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