30.5.13

A cidade que não está lá


Isto que se vê aí na foto é uma parte do pouco que restou de Lidice, uma pequena cidade a alguns quilômetros de Praga, capital de República Tcheca. Em 1942, Lidice teve todos os seus homens mortos, as mulheres enviadas para campos de concentração e as crianças encaminhadas para famílias alemãs, para que fossem criadas como membros da 'raça ariana'. As construções da vila, e até mesmo o cemitério, foram intensamente bombardeados, de forma a que não restasse absolutamente nada de pé. Nas palavras de Hitler, a cidade deveria "desaparecer de qualquer mapa".

Lidice, na verdade, foi a cidade escolhida para servir de exemplo e castigo, simbolizando a vingança pelo assassinato do braço direito do Fürer, Reinhard Heydrich, que estava na República Tcheca e tinha por missão dominar toda a região da Bohemia. Em 27 de maio de 1942, dois paraquedistas treinados na Inglaterra - o eslovaco Jozef Gabčík e o tcheco Jan Kubiš -, cercaram o carro de Heydrich nas ruas de Praga e o assassinaram. A operação foi toda cercada de lances dramáticos: a arma de Josef emperrou na hora em que ele, postado em frente ao carro que transportava o nazista, iria atirar. Jan, então, atira uma granada no Mercedes, enquanto Josef foge.

Heydrich, comprovando o ditado de que "vaso ruim não quebra fácil", não morre na hora, e ainda teima durante duas semanas no hospital, até sucumbir a uma septicemia, devido aos estilhaços da granada que penetraram no seu abdômen. A partir da sua morte, duas operações são deflagradas pelo Reich: a primeira era a de descobrir quem tinham sido os responsáveis pela emboscada e matá-los sucintamente. A segunda, com um sentido mais 'pedagógico' para o povo tcheco, foi exatamente o banimento de Lidice do mapa, como um recado para que se a submissão não fosse completa, o mesmo poderia acontecer a outras cidades, ou até a capital, Praga.

A cidade foi bombardeada, todos os habitantes adultos foram assassinados, fosse na hora, fosse mais tarde, em campos de concentração. As mulheres viram os seus maridos serem arrastados de casa e fuzilados, todos juntos, em um mesmo galpão. Não fosse o bastante, tiveram seus filhos arrancados de seus braços e, sem saber o que aconteceria com as crianças, foram embarcadas para o campo de concentração de Ravensbrück. Ao final do macabro dia 12 de junho de 1942, o saldo em Lidice era de 173 homens assassinados, 203 mulheres embarcadas em trens, e 105 crianças deslocadas para outras famílias. Mulheres que estavam grávidas foram conduzidas ao hospital (o mesmo que Heydrich morreu) e tiveram seus abortos forçados. A cidade morreu. Ao menos, fisicamente.




Visitei Lidice em um lindo dia de sol no final de maio. A paisagem muito verde, já florescida pela primavera, contrastava abertamente com a pesada história do lugar. Os tchecos - acertadamente, na minha opinião - optaram por manter o local do bombardeio exatamente como ficou depois do episódio: um descampado com alguns destroços marcando o local de algumas das construções. Um belíssimo monumento tenta retratar o desamparo das crianças, colocadas todas juntas, sem saber o que iria acontecer com elas.







A autora da obra captou, à perfeição, o que deve ter sido a expressão daquelas crianças, que em uma manhã de junho, viram o mundo como conheciam até então ser esfacelado: atônitas, separadas de suas mães, órfãs de seus pais que haviam sido mortos mais cedo, sem saber qual seria o seu destino, certamente sem entender o que estava acontecendo.


Hitler, certamente atingiu seu objetivo: varreu a Lidice concreta do mapa. Mas, ao fazer isso, construiu uma cidade muito mais forte do que aquela feita de pedras. Uma cidade simbólica foi - paradoxalmente à destruição da real - erguida pela fúria devastadora do austríaco. E esta não conhece fronteiras, não conhece dimensões, não respeita vontades de tiranos ensandecidos. Lidice não está lá. Ao mesmo tempo, não podia estar tão presente.

A Lidice que vemos hoje nos emociona, nos comove, nos faz ter raiva, nos envolve com histórias de pessoas que sequer sonhamos conhecer. Cumpre, assim, o verdadeiro papel de uma cidade: construir relações entre os seres. 

A Lidice que vemos hoje no local da antiga é uma cidade na qual uma mãe leva a sua filha para que ela deposite ali, aos pés daquelas crianças cujo paradeiro desconhecemos, daquelas crianças que, em outro tempo, poderiam ter sido ela própria, um brinquedo. Um símbolo de que a vida (sempre!) continua e de que aquelas crianças e aquela cidade jamais serão esquecidas.




Esta história continua. Me apaixonei por todo o episódio, e, como boa obsessiva, fui atrás do que aconteceu na outra operação do deflagrada pelo Reich: a punição aos culpados pelo assassinato. Este será assunto para um próximo post. 

Esta narrativa vai atravessada por um agradecimento especial a um apaixonado por história como eu, que me apresentou à história de Lidice e me levou para conhecer a cidade. Danke schön, Sérgio!

6 comentários:

  1. Lindo, Eliane! Beijos no coração...

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  2. Significativo, forte, traços de uma história que nunca deve ser esquecida para que não repitamos os erros do passado, para que não se ressuscitem velhos fantasmas, muitos deles presentes em nosso dia-a-dia, nas mais mais diferentes dimensões da vida social.

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    1. Concordo contigo. É fácil pensarmos que isso ficou para trás e jamais se repetirá. Mas, de forma diferente e por outras razões, temos hoje, por todo o mundo, atos bárbaros tão graves quanto este. Talvez, por terem menor divulgação, por acontecerem em países sobre os quais temos poucas informações, não nos atinjam de forma tão contundente. Mas continuam a acontecer.

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  3. Amei ser apresentada a essa parte da história pela sua sensibilidade ímpar.

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    1. Obrigada, Karina! Se conseguir, tente assistir à 'Lidice', que passou na mostra de filmes Tchecos que está rolando no Metropolis. Ele trata desse episódio de forma super emocionante.

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