4.2.14

Eu olho, tu olhas. Nós vemos?


Tenho pensado muito sobre o olhar. Isso, por si, não é novidade: construí toda uma carreira pensando e pesquisando sobre formas de ver. De cidades à arte, passando pelo cinema, as visões e interpretações a respeito das manifestações urbanas e culturais sempre me interessaram. A capacidade que têm pessoas diferentes de lançarem seus olhares para algo e enxergarem coisas totalmente diversas é, para mim, fascinante e curiosa.

A novidade é que tenho pensado sobre o olhar que lançamos à outras pessoas. De desconhecidos às pessoas que nos cercam, somos rápidos em formar opiniões, em lançar julgamentos, em cristalizar teorias. Tudo vale de referência: as roupas, a escolha de palavras, o comportamento, os pequenos gestos. De minúsculos elementos construímos o nosso olhar, e esse, uma vez definido... ah! o bicho finca pé e custa a mudar. 

O escritor Oscar Wilde colocou na boca de um de seus personagens a frase emblemática: "só os tolos não julgam pelas aparências". E, embora morto há tempos, Wilde tem cada vez mais razão nesse momento das imagens rápidas, da espetacularização e da superexposição. Somos rápidos em formar opiniões. Mesmo sobre as pessoas que já conhecemos há tempos, mesmo que saibamos que todos somos complexos, possuímos milhões de ranhuras, detalhes, frestas, onde se escondem o melhor e o pior de cada um. 

Há alguns dias saí com uma pessoa que conheço há algum tempo. Seria exagero chamar o que nos une de 'amizade', mas é uma boa relação: cordial, bem humorada, de pessoas que têm gostos e realidade parecidos. E, embora conheça essa pessoa há algum tempo, nesse dia eu realmente OLHEI para ela. Em meio a sol, cervejas e conversa fácil, foram surgindo - sabe-se lá por que caminhos - os assuntos 'sérios'. Desses que a gente dificilmente conversa em mesas de bar, nos encontros combinados apenas para a diversão. E, escapando a qualquer expectativa, eles vieram: aqueles temas que acabam por ficar restritos ao sofá do analista ou aos amigos de uma vida inteira. Aqueles que nos assombram os pesadelos que atravessamos fechados em quartos escuros. Eles vieram sob um sol escaldante, no espaço aberto à beira de um enorme e lindo marzão azul brilhante. E eu, ouvindo e conversando, não parava de me impressionar: 'cara, eu conheço essa pessoa, e ela é tão alegre, e tão viva, e tão bonita... como pode ter passado por isso tudo?', me perguntava, atônita. Naquela hora, me lembrei de uma frase que tinha lido há alguns dias em uma rede social, que afirmava que cada um de nós vive uma batalha que é sempre desconhecida dos demais. 

Coincidentemente, ontem, na procura de um livro novo para ler, me caiu nas mãos "A vida que ninguém vê", da jornalista gaúcha Eliane Brum. Gosto do texto de Eliane: poético, fluido, sensível, direto sem ser simplista. Acompanhei sua coluna na revista semanal da qual ela fazia parte, e hoje leio seus textos pela internet. Mas o tema do livro... esse eu amei! A jornalista saiu por Porto Alegre olhando para as pessoas que ninguém olha, para as vidas que são o 'pano de fundo' da nossa, para aqueles que parecem - aos nossos olhos burgueses e acostumados a ver o que nos é igual - menos importantes do que nós mesmos. E que descobertas ela traz! Que personagens ricos, que universos interessantes, que comportamentos loucos e lindos! Acompanhamos, com Eliane, a história do menino sem pernas que sentia falta de voar, do macaco que fugiu do zoo e foi tomar uma cerveja no bar, do homem que fez da sua vida um eterno recolher de restos de outras vidas. Do sujeito que vai todo dia para o aeroporto e nunca voou em um avião e do sapo humano que cava a sobrevivência deitado nas lajes da cidade. E eu, aqui do outro lado das páginas, a cada história, a cada personagem, a cada luta diária das 'pequenas criaturas' de Eliane, me emociono e choro. Não de pena. De admiração. 

Da mesma forma que passei a admirar mais a amiga que tem a vida mais rica - e dura - do que eu poderia imaginar, admiro profundamente alguém que não anda e passa os dias deitado nas ruas da cidade, e, ao ser indagado "como é ver o mundo de baixo para cima?" é capaz de responder:
"- É mais bonito de baixo para cima do que de cima para baixo".

7 comentários:

  1. tão viva, tão alegre, tão bonita...você, querida amiga ; e seu artigo é bonito também e expressivo :-) um abraço. Hadi

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    1. Obrigada, meu amigo! Um beijo enorme para ti e Marie Claire!

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  2. Lindo texto! Discuto isso comigo mesmo. Essa tal de verticalidade...
    Obrigado por compartilhar o seu ponto de vista e pela dica do livro que, certamente, entrará para a minha lista!

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    1. Peguei o livro emprestado na biblioteca do campus Vitória. Não deixe de procurá-lo, vale muito a pena!
      Obrigada pelo elogio!

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  3. Tão bom voltar a ler o teu texto.... Bom início de ano!

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  4. Adorei o texto, cheio de sensibilidade,reflexão necessária!... E quando olhamos para nosso próprio olhar vemos quão generoso pode ser, se nos mantivermos atentos, mas não com os olhos da mente...esses vivem nos traindo, sentenciando a tudo e a todos e, raramente percebemos. Abramos nossos olhos com maior frequência! Bjao, Eliana

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