17.11.16

David Foster Wallace como experiência religiosa



Gosto muito do sentido da palavra religião que ressalta o elo entre nós e a transcendência: re-ligare. Embora muitos aleguem que essa origem etimológica da palavra religião é equivocada, apenas uma aproximação vocabular falsa repleta de beleza e boas intenções, nesse caso, prefiro ficar com essa possível mentira. Talvez pelo romantismo de acreditar que uma boa religião - qualquer que ela seja - deva mesmo promover essa ligação: os homens e seu deus - qualquer que ele seja.

Na prática, isso acaba por não fazer muito sentido quando - falando no sentido estrito - não seguimos nenhuma religião, o que é exatamente o meu caso. O fato de não seguir nenhuma doutrina, porém, não nos cala essa necessidade de experimentar a ligação com o Outro, com o mundo, com a natureza, com as experiências de outrem. Esse anseio cada um de nós tem. Podemos supri-lo nas relações amorosas, nas relações de afeto com pais, filhos e grandes amigos, nos nossos trabalhos. Há mesmo aqueles que o resolvem através do consumo ou outros para quem essa ligação com o mundo fora de si é insuportável, causando dor absoluta. Esses, por vezes, a calam no entorpecimento das drogas ou dos excessos de qualquer ordem.

Sempre fui do tipo que estabelece essa ligação com o mundo e com o Outro através da manifestação artística. Sou aquela que você vai encontrar despejando lágrimas ridículas em museus, espetáculos de dança ou em finais de livros que nada têm de tristes. Não é a tristeza que possa estar relatada ali que me toca. O que me emociona profundamente é a capacidade do outro criar algo que funciona como uma ponte entre ele e eu, que nos liga, embora nunca tenhamos nos conhecido, embora às vezes as dimensões espaço-temporais que tenhamos habitado nada tenham em comum.

Se você conhece um pouco do escritor que menciono acima, você já sabe que o título desse post foi tirado de uma de suas crônicas, "Federer como experiência religiosa", na qual Wallace relata a experiência de assistir à final de Wimbledon entre o tenista suiço Roger Federer e o espanhol Rafael Nadal. Eu não jogo tênis. Não entendo as regras do tênis. Nunca tive vontade de praticar essa modalidade de esporte. Mas me comovi com o texto de Wallace da mesma forma como me comovi com o seu relato da morte de uma lagosta mergulhada em água fervente em "Pense na lagosta".

Essa, para mim, é a marca de um bom artista, seja em qual área ele atue: ele te leva para dentro do mundo dele. Calder te leva pra flutuar com seus móbiles; Van Gogh te envolve com a noite estrelada; Kaufman e Jonze te fazem acreditar nos absurdos que colocam na tela enquanto brincam de ser John Malkovich. Como dizia Hitchcock, o trabalho da arte é uma ilusão e a qualquer momento o espectador (de cinema, no caso) pode segurar os braços de sua cadeira e se lembrar que o que está na tela não é real. Mas, continuava o cineasta, se ele fizesse o seu trabalho direito, esse espectador se esqueceria de que a sua cadeira tinha braços nos quais segurar.

Essa é uma boa metáfora para o trabalho de Wallace: ele faz com que os seus leitores se esqueçam. De que não gostam de tênis, de que não comem lagosta, de que nunca leram Kafka ou nunca fizeram um cruzeiro de navio. O texto dele te imerge de maneira tão completa, que, na verdade, essas coisas deixam de ter importância face aos diversos níveis de interpretação possíveis às palavras.

Nunca tinha ouvido falar do escritor até pouco tempo atrás, quando assisti a "O final da turnê" (James Ponsoldt, 2015). No filme, David Lipsky, jornalista da revista Rolling Stone fica sabendo da morte de Wallace e relembra a reportagem que fez, anos antes, acompanhando o final da turnê de promoção de "Infinite Jest", o livro que o tornou muito conhecido (Graça infinita, no Brasil). Na narrativa do filme, vemos um cara cheio de incoerências, cheio de manias, cheio de fragilidades. Como todos nós. Um sujeito cativante pela sua humanidade, que anda sempre com uma ridícula bandana para "evitar que sua cabeça exploda". Levei mais ou menos até a metade do filme (que encontrei zapeando por acaso na madrugada) para entender que aquele cara era um personagem "real" e que a narrativa se baseava na experiência de Lipsky com um escritor que havia, realmente, se enforcado no quintal de casa.

No dia seguinte comecei a ler "Graça Infinita", um livro extenso, um livro irritante, um livro instigante. Mais de mil páginas de sarcasmo, ironia fina, inteligência.

Mas foi com "Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo" que encontrei Wallace em sua mais afiada forma. O livro reúne algumas crônicas do autor sobre assuntos diversos: Federer, a lagosta, uma feira municipal, um cruzeiro de navio, Kafka, e o lindo discurso de paraninfo "Isto é água". Mergulhei em cada um desses assuntos para, ao término, ter que 'voltar à tona' e me lembrar, como em um episódio de sonambulismo, quem eu sou. Continuava sendo eu, mas com alguns pedacinhos que incorporei de cada uma das leituras. Esses pedacinhos intensificaram a minha ligação com o mundo. Daí a comparação dessa leitura com uma experiência religiosa, daquelas que te fazem entender melhor o lugar que você ocupa e o mundo que te cerca.

Fico, depois de travar contato com a obra de Wallace, com aquela sensação de quem chegou tarde demais na festa, sabe como? Como assim, isso tudo acontecia há mais de uma década e eu não estava sabendo?...Como não lamentar que um cara que te faz rir às gargalhadas com uma nota de rodapé não esteja mais em atividade? (aliás, essa é uma dica para possíveis futuros leitores: nunca, NUNCA deixe de lado uma nota de rodapé sem lê-la). Como entender que alguém proveniente de outra cultura e outros valores, toque tão profundamente em questões que são tão caras a você? (e, mais sério ainda, através de temas que não te interessam em absoluto). Saio da leitura de Wallace com essa sensação: fui ali, dei um mergulho e, quando voltei, o mundo não era mais o mesmo.



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