5.4.12

A primeira


Na véspera:
Fui jantar com um amigo. Firmemente decidida a não beber nada, mas, face à massa al carbonara que nos encarava à mesa, precisei de reforços: 'du vin rouge, s'il vous plaît!'
Cheguei em casa tarde, incomodada porque achei que meu cabelo estava com cheiro de comida. Tomei um banho e não tive paciência de esperar secar. Fui dormir com os cabelos molhados.
Dormi mal, acordei várias vezes durante a noite, levantei para ver as horas, para tomar água, para olhar pela janela, para pensar na vida...

No dia:
Cabelos molhados + várias horas amassados no travesseiro + noite mal dormida e... voilà! Acordei que nem o Rei Leão com olheiras. As olheiras ainda consegui ajeitar com maquiagem, mas o cabelo não havia nenhuma possibilidade de domar, já que o meu senso de economia de espaço na mala me fez largar o secador no Brasil, confiando nos meus cabelos 'lisos'.
Acordei na hora, mas resolvi fazer umas últimas 'modificaçõezinhas' no texto a ser apresentado. Resultado: uma hora e meia na frente do computador e várias mudanças que tiveram que ser inseridas à mão no texto já impresso.
Saí correndo, enfrentando o dia mais frio desde que cheguei em Paris. Prá piorar, com chuva.
Desci na estação 'Notre dame des champs' e (claro!) andei para o lado errado por mais de um quarteirão até perceber o engano. Quem me conhece não se espanta. Eu e minha 'desbussolice' andamos de mãos dadas há muito tempo...
Enfim, percebi o engano, dei meia volta e entrei no 105, Boulevard Raspail. École des Hautes Études en Sciences Sociales. EHESS.

Comecei a lembrar da primeira vez em que, intimidada, entrei neste prédio. Era a segunda semana em Paris e eu começava a escolher os seminário dos quais iria participar. Vim aqui por causa de um curso chamado "Une histoire de la vision", cujo professor, um filósofo, traçava uma epistemologia da visão que, achei, me interessaria para pensar o cinema.
Nas primeiras aulas, não abria a boca, morta de medo do meu francês ainda 'macarrônico' não dar conta do que queria dizer. Lá pela quarta ou quinta semana de seminário, o professor começa a falar de um livro que eu havia lido, chamado "La fadigue d'être soi". De repente, pára, e reclama: 'não consigo me lembrar do nome do autor!'. Seguiu-se o seguinte diálogo:
Eliana (BEM baixinho): Ehrenberg.
Monsieur Jorland: Pardon?
Eliana (já em tom de voz de gente normal): Ehrenberg. Alain Ehrenberg. C'est le nom de l'auteur du livre
Monsieur Jorland: Voilà! Merci!
No final da aula, quando tudo que eu queria era sair dali despercebida, monsieur Jorland subitamente me olha e pergunta: 'E você? Qual é o seu interesse neste seminário?'
Tusso. Respiro. Engasgo. Limpo a garganta. Gaguejo. Começo: 'Bom, eu estudo cinema...'

Quase um ano depois, nas vésperas de voltar ao Brasil, já conhecia monsieur Jorland bem melhor. Conversamos várias vezes sobre o meu tema, ele sugeriu livros e assistiu meus vídeos. Os encontros com ele para conversar sobre a minha tese e sobre os temas nos quais tínhamos interesses em comum acabaram se tornando uma agradável rotina.
Neste último encontro, ele, cortesmente, me pergunta: 'E então, você gostou de morar em Paris?'
E eu digo, claro, a cidade é linda, eu avancei bastante na tese, essas coisas de praxe.
E ele: 'Você gostaria de voltar?'
Eu: 'Sim, claro! Quem sabe, mais tarde, para um pós-doc...'
Ele: 'Bom, eu estava pensando em algo mais próximo. Pensei em lhe fazer um convite para que você retorne no ano que vem, como 'professeur invité' dentro do meu seminário'
Eu: ahhhh... errrr..... bom.... (Eu entendi errado, claro. Puxa, e eu aqui pensando que meu francês estava indo tão bem... Pateta! Mas o que foi mesmo que ele disse?...)
Ele: Eliana, você está me acompanhando?
Eu: Er... Não, desculpe monsieur Jorland. O senhor pode repetir?

Pois é. Era aquilo mesmo e, um ano e meio depois, eu estou aqui novamente, pronta para a minha primeira conferência na EHESS. Acho que nunca estive tão nervosa na vida. Descubro, aterrorizada, que serão duas turmas juntas, uma de filosofia, outra de antropologia. O nervosismo aumenta na exata proporção do número de pessoas que entra na sala. Eu começo a falar.
Vou poupar quem está lendo dos detalhes, mas... tudo se passou 'très bien'. Consegui falar sem gaguejar, os filmes que eu escolhi para passar rodaram sem problemas no computador, e eu sobrevivi mesmo àquela assustadora meia hora de perguntas no final.
Nos últimos minutos, como a discussão acabou migrando para as diversas formas de ver uma cidade, e eu estava mais à vontade, resolvi passar para eles um vídeo curtinho - que fiz em 2008 para o Salão de Arte e Cidade que aconteceu na Ufba, em Salvador -, chamado 'Ways'.
E foi então, enquanto o vídeo rodava, que a ficha caiu. A aula, que me assustou durante tanto tempo, já estava acabando. E daí, todo esse filminho que eu descrevi acima passou na minha cabeça. Confesso que fiquei feliz pelas luzes estarem apagadas por causa do vídeo, porque meus olhos se encheram de lágrimas...
Bom, a primeira já foi. Semana que vem tem mais!


13 comentários:

  1. Parabéns Eliana!!!!
    Me orgulho muitíssimo de fazer parte da sua vida.
    Samuel

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Você não tem que me dar parabéns. Eu é que tenho a agradecer todo o apoio e toda a paciência com os meus milhares de 'prioridades' e compromissos nos últimos meses! Ninguém é nada sozinho e eu fico muito feliz de você estar do meu lado - mesmo que agora um oceano nos separe - para podermos comemorar as nossas conquistas!

      Excluir
  2. Parabéns querida,
    É engraçado como a sensação de nervosismo, e um certo pânico, vai aos poucos dando lugar a uma enorme satisfação e prazer por estar ali na frente falando, trocando informações, semeando idéias!!!!! Parabéns!!!!!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, Xandinho, é um dos prazeres de ser professor, não é?!? Obrigada, querido, e um grande beijo para ti e para Sirana!

      Excluir
  3. Eliana!!! Você sempre consegue me emocionar com suas palavras, pois discorre de um assunto tão corriqueiro do dia-dia para outro mais específico com uma desenvoltura sutil.
    Tá piegas?? Ah não tá não vai... rs... É o que eu acho de verdade.
    Bejo super
    Peinha
    PS: Conta mais pra gente na semana que vem tá??? Ficarei esperando;)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não tem nada de piegas! Carinho, amizade e apoio NUNCA são piegas! Quem acha isso é que é cafona, rsrsrsrs....
      Obrigada pelo elogio, minha linda, volto aqui para contar o resto da minha 'saga' pelas salas de aula da École, pode deixar!
      Beijos grandes!

      Excluir
  4. Eliana,
    Agora que eu já ouvi vc falar como palestrante, sou testemunha da sua calma, delicadeza e do domínio que tem sobre o tema. Tenho certeza que a platéia francesa tb agradeceu. Parabéns! Bj
    Cida Ramaldes

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigada, Cida! Hoje conversei com o monsieur Jorland e ele me disse que ficou espantado, e que os alunos não costumam aplaudir ao final das aulas, como fizeram na minha. Eu achei que era algo relativamente comum com conferências de professores que vem de fora, mas, na hora em que ele disse isso, eu lembrei das tuas palavras aqui... Acho que as pessoas percebem quando a gente faz algo de que gosta de verdade. Mesmo que esteja muito nervosa, como eu estava! Beijo, querida!

      Excluir
  5. Parabéns Eliana! Tenho certeza que a aula foi um sucesso! Continua sim nos contando os detalhes dos próximos encontros e as tuas impressões sobre esse retorno a Paris. Realmente, deve ser uma sensação maravilhosa voltar à Paris, à Maison, à EHESS... - aproveita muito! Eu, que também deixei Paris no dia 21/12/2010, ainda aguardo por este reencontro! Um grande beijo,
    Márcia

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Oi Márcia! Que bom ter notícias suas! Eu me lembro, claro, fomos embora de Paris no mesmo dia, e estávamos com medo daquela neve toda não deixar os nossos aviões decolarem... mas acabou dando tudo certo!
      Pois é, mesmo que ainda não tenha havido o reencontro seu com Paris, tenho certeza que ele não tardará muito. E o que é melhor: você vai poder curtir a cidade sem ter uma tese para escrever, rsrsrsrs...
      Beijos!

      Excluir
  6. haha me emocionei lendo esse post ;)

    ResponderExcluir
  7. Ô linda... sou obrigada a dizer:
    Foram os meus olhos que encheram de lágrima ao ler esse teu texto!
    Senti cada sentimento!
    E junto senti um orgulho por ti!
    Sempre te admirei e sei que se hoje estás aí, fazendo tudo isso, é por total merecimento. O nervosismo faz parte, é normal, e que bom que ele existe, faz ser real. Mas tenho certeza que os que foram á para te ouvir falar e participar da discussão saíram pensando: que bom que eu vim!

    Sucesso, ELI!
    beijuuus

    ResponderExcluir