30.11.14

Um livro escrito para mim




Estou lendo um livro. Estou lendo um livro escrito para mim. Não, ele não foi escrito para mim de verdade. Ele foi escrito para qualquer um que esteja disposto a lê-lo. Mas, a sensação que eu tenho é que a sua autora - a marroquina Muriel Barbery - entrou dentro de mim. Abriu portas, gavetas, revirou cortinas e sentimentos, afastou poeiras e sensações, escolhendo apenas alguns itens. Com eles, escreveu esse livro.

Nele, os personagens dizem, com frequência, coisas que eu diria. 

Pior, eles pensam coisas que eu penso - e não digo à ninguém além do espelho. 

E, ainda pior (!), eles dizem e pensam coisas que eu não digo nem penso (ou não pensei até o momento), mas que são tão 'eu' que me identifico imediatamente, perfeitamente, plenamente. E essas coisas explicam sentimentos, sensações, preferências e atitudes com uma acuidade rara.

Ler um livro assim é uma experiência curiosa: no início é agradável, a gente se sente um pouco 'acompanhada' no mundo. Uma sensação de 'ah, olha só, esse personagem é que nem eu...'. Você avança e essa sensação vai dando lugar a um incômodo, a uma impressão de quem alguém... invadiu. Sua casa, seus livros, e, mais sério, você próprio. 'Mas não é possível!', me pego pensando a cada página, entre divertimento e incômodo. Os personagens de Barbery não têm nada em comum - na sua vida cotidiana, nas suas ocupações ou aparência - comigo. Nem uns com os outros, na verdade. Mas isso apenas acentua a sensação de identificação verdadeira.

Daí hoje, eu - que não consigo ver uma orquestra sem ter meus olhos se enchendo involuntariamente de lágrimas, e nunca pensei muito no motivo disso além daquela óbvia explicação de que 'ah, é tanta gente que se une para fazer algo tão bonito...' -, dou de cara com uma passagem que trata sobre um coral. E a autora coloca a minha sensação tão acuradamente no pensamento da sua personagem, que não resisti: retomei a escrita aqui no blog, abandonado há tanto tempo, tadinho, para compartilhar esse trecho:

"É sempre um milagre. Todas aquelas pessoas, todas aquelas preocupações, todos aqueles ódios e todos aqueles desesperos, todo aquele ano de colégio com suas vulgaridades, seus acontecimentos menores e maiores, seus professores, seus alunos heterogêneos, todas essa vida em que nos arrastamos, feita de gritos e lágrimas, risos, lutas, rupturas, esperanças desfeitas e chances inesperadas: tudo desaparece de repente quando os coristas começam a cantar. O curso da vida se afoga no canto, há uma impressão de fraternidade, de solidariedade profunda, de amor mesmo, e isso dilui a feiúra do cotidiano numa comunhão perfeita. Até os rostos dos cantores ficam transfigurados; não vejo mais Achille Grand-Fernet (que tem uma linda voz de tenor), nem Déborah Lemeur nem Ségolène Rochet nem Charles Saint-Sauveur. Vejo seres humanos que se entregam ao canto.
É sempre a mesma coisa, tenho vontade de chorar, fico com a garganta apertada e faço o possível para me controlar, mas às vezes chego ao limite: mal consigo me reter para não soluçar. Então, quando tem um cânone, olho para o chão, porque é muita emoção ao mesmo tempo: é muito bonito, muito solidário, muito e maravilhosamente comunicante. Não sou mais eu mesma, sou uma parte de um todo sublime a que os outros também pertencem, e nesse momento sempre me pergunto porque não é essa a regra do cotidiano em vez de ser um momento excepcional de coral.
Quando o coral para, todos batem palmas, com o rosto iluminado e os coristas radiantes. É tão bonito.
Finalmente fico pensando se o verdadeiro movimento do mundo não seria o canto."

E, ao final do trecho, entendo melhor a minha comoção sempre que presencio uma orquestra, um coral, até uma banda marcial. Essa sensação em mim sempre foi tão forte que a coloquei mesmo como abertura da minha tese, para servir de metáfora ao funcionamento das cidades: as sinfonias urbanas. Na música produzida por grandes grupos e nas cidades é necessário haver o sentido de coletividade como fio condutor.

O livro - que, me dou conta, não falei o nome até agora - chama-se "A elegância do ouriço". Essa é uma referência a uma das personagens, uma mulher aparentemente muito dura e muito simples, mas dotada de uma delicadeza e sofisticação raras. Fico pensando que é também uma boa metáfora social. Somos, na verdade, todos meio 'ouriços': duros e espinhosos por fora (e tanto mais duros e espinhosos quanto o forem as cidades nas quais vivemos), mas temos uma elegância interna que mostramos para muito poucos.

E permaneço aqui, matutando na pergunta da escritora, que retomo sempre que presencio algo muito bonito realizado de forma coletiva: porque não é essa a regra do cotidiano?



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