Estou lendo um livro. Estou lendo um livro escrito para mim. Não, ele não foi escrito para mim de verdade. Ele foi escrito para qualquer um que esteja disposto a lê-lo. Mas, a sensação que eu tenho é que a sua autora - a marroquina Muriel Barbery - entrou dentro de mim. Abriu portas, gavetas, revirou cortinas e sentimentos, afastou poeiras e sensações, escolhendo apenas alguns itens. Com eles, escreveu esse livro.
Nele, os personagens dizem, com frequência, coisas que eu diria.
Pior, eles pensam coisas que eu penso - e não digo à ninguém além do espelho.
E, ainda pior (!), eles dizem e pensam coisas que eu não digo nem penso (ou não pensei até o momento), mas que são tão 'eu' que me identifico imediatamente, perfeitamente, plenamente. E essas coisas explicam sentimentos, sensações, preferências e atitudes com uma acuidade rara.
Ler um livro assim é uma experiência curiosa: no início é agradável, a gente se sente um pouco 'acompanhada' no mundo. Uma sensação de 'ah, olha só, esse personagem é que nem eu...'. Você avança e essa sensação vai dando lugar a um incômodo, a uma impressão de quem alguém... invadiu. Sua casa, seus livros, e, mais sério, você próprio. 'Mas não é possível!', me pego pensando a cada página, entre divertimento e incômodo. Os personagens de Barbery não têm nada em comum - na sua vida cotidiana, nas suas ocupações ou aparência - comigo. Nem uns com os outros, na verdade. Mas isso apenas acentua a sensação de identificação verdadeira.
Daí hoje, eu - que não consigo ver uma orquestra sem ter meus olhos se enchendo involuntariamente de lágrimas, e nunca pensei muito no motivo disso além daquela óbvia explicação de que 'ah, é tanta gente que se une para fazer algo tão bonito...' -, dou de cara com uma passagem que trata sobre um coral. E a autora coloca a minha sensação tão acuradamente no pensamento da sua personagem, que não resisti: retomei a escrita aqui no blog, abandonado há tanto tempo, tadinho, para compartilhar esse trecho:
"É sempre um milagre. Todas aquelas pessoas, todas aquelas preocupações, todos aqueles ódios e todos aqueles desesperos, todo aquele ano de colégio com suas vulgaridades, seus acontecimentos menores e maiores, seus professores, seus alunos heterogêneos, todas essa vida em que nos arrastamos, feita de gritos e lágrimas, risos, lutas, rupturas, esperanças desfeitas e chances inesperadas: tudo desaparece de repente quando os coristas começam a cantar. O curso da vida se afoga no canto, há uma impressão de fraternidade, de solidariedade profunda, de amor mesmo, e isso dilui a feiúra do cotidiano numa comunhão perfeita. Até os rostos dos cantores ficam transfigurados; não vejo mais Achille Grand-Fernet (que tem uma linda voz de tenor), nem Déborah Lemeur nem Ségolène Rochet nem Charles Saint-Sauveur. Vejo seres humanos que se entregam ao canto.
É sempre a mesma coisa, tenho vontade de chorar, fico com a garganta apertada e faço o possível para me controlar, mas às vezes chego ao limite: mal consigo me reter para não soluçar. Então, quando tem um cânone, olho para o chão, porque é muita emoção ao mesmo tempo: é muito bonito, muito solidário, muito e maravilhosamente comunicante. Não sou mais eu mesma, sou uma parte de um todo sublime a que os outros também pertencem, e nesse momento sempre me pergunto porque não é essa a regra do cotidiano em vez de ser um momento excepcional de coral.
Quando o coral para, todos batem palmas, com o rosto iluminado e os coristas radiantes. É tão bonito.
Finalmente fico pensando se o verdadeiro movimento do mundo não seria o canto."
E, ao final do trecho, entendo melhor a minha comoção sempre que presencio uma orquestra, um coral, até uma banda marcial. Essa sensação em mim sempre foi tão forte que a coloquei mesmo como abertura da minha tese, para servir de metáfora ao funcionamento das cidades: as sinfonias urbanas. Na música produzida por grandes grupos e nas cidades é necessário haver o sentido de coletividade como fio condutor.
O livro - que, me dou conta, não falei o nome até agora - chama-se "A elegância do ouriço". Essa é uma referência a uma das personagens, uma mulher aparentemente muito dura e muito simples, mas dotada de uma delicadeza e sofisticação raras. Fico pensando que é também uma boa metáfora social. Somos, na verdade, todos meio 'ouriços': duros e espinhosos por fora (e tanto mais duros e espinhosos quanto o forem as cidades nas quais vivemos), mas temos uma elegância interna que mostramos para muito poucos.
E permaneço aqui, matutando na pergunta da escritora, que retomo sempre que presencio algo muito bonito realizado de forma coletiva: porque não é essa a regra do cotidiano?
Lindo texto!
ResponderExcluir